VOCÊ É O QUE VOCÊ PENSA? – Pensamentos, Afetos e o Discipulado Cristão

Le Penseur (O Pensador), Auguste Rodin, 1904, Paris - França

“O que você quer? ”

Essa é a questão. É a primeira, a última e a mais importante pergunta do discipulado cristão. No Evangelho de João, é a primeira pergunta que Jesus faz àqueles que viriam a segui-lo. Quando dois futuros discípulos, arrebatados pelo entusiasmo de João Batista, começam a segui-lo, Jesus se volta rapidamente e pergunta de forma incisiva: “... Que desejais?...” (Jo 1.38). Essa é a questão implícita em quase todas as demais perguntas que Jesus faz a cada um de nós. “Você virá e me seguirá? ” é outra versão de “Que desejais? ”, assim como a pergunta fundamental que Jesus faz ao seu discípulo errante, Pedro: “... tu me amas?...” (Jo 21.16). Jesus não se encontra com Mateus, com João, ou mesmo com você ou comigo e pergunta: “O que você sabe? ”. Ele nem mesmo pergunta: “Em que você crê? ”. Pergunta: “O que você quer? ”. É a pergunta mais incisiva e penetrante que Jesus pode nos fazer, porque precisamente nós somos o que queremos.

Nossas vontades, anseios e desejos estão no cerne de nossa identidade, a fonte de onde fluem nossas ações e comportamentos. Nosso querer reverbera o que há em nosso coração, o epicentro da pessoa humana. Por isso, as Escrituras aconselham: “Acima de tudo que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). Poderíamos dizer que o discipulado é uma forma de você exercer uma “curadoria”, exercer cuidados, estar atento quanto ao que ama e de ser intencional quanto a isso. Assim, o discipulado diz mais respeito a desejar, ansiar do que a conhecer e crer. A ordem de Jesus para que o sigamos é um chamado a alinhar nossos amores e anseios aos dele — querer o que Deus quer, desejar o que Deus deseja, ansiar pelo que Deus anseia e almejar por um mundo onde ele é tudo em todas as coisas — uma visão que se resume na expressão “o reino de Deus”. Jesus é um mestre que não apenas instrui nosso intelecto, ele forma nossos próprios amores. Ele não se contenta em apenas depositar novas ideias em nossa mente; ele busca nada menos que nossos desejos, amores e anseios. Seu “ensino” não toca apenas no espaço calmo, tranquilo e sereno da reflexão e da contemplação; ele é um mestre que invade as regiões mais aquecidas e apaixonadas do coração. Ele é a Palavra que “penetra até o ponto de dividir alma e espírito”; ele “é capaz de perceber os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4.12). Seguir a Jesus é tornar-se um aluno do Rabi que nos ensina a amar; ser um discípulo de Jesus é matricular-se na escola do amor. Jesus não é um catedrático. Sua escola do amor ou da caridade não é como um auditório onde passivamente tomamos notas, enquanto Jesus expõe fatos sobre si num discurso tedioso de PowerPoint, carregado de texto.

Ainda assim, frequentemente abordamos o discipulado como uma iniciativa principalmente didática; como se tornar um discípulo de Jesus fosse um projeto predominantemente intelectual, uma questão de conhecimentos a ser adquiridos. Por que isso ocorre? Porque toda abordagem do discipulado e da formação cristã presume um modelo implícito daquilo que os seres humanos são. Apesar de essas pressuposições permanecerem geralmente inarticuladas, nós, contudo, trabalhamos com algumas suposições fundamentais (ainda que não manifestas) sobre o tipo de criatura que somos — e, portanto, sobre o tipo de aprendizes que somos. Se ser um discípulo é ser aluno e seguidor de Jesus, então muita coisa depende do que você entende por “aprender”. E aquilo que você entende por aprender depende do que você pensa que os seres humanos são. Em outras palavras, sua compreensão do discipulado refletirá um conjunto de suposições práticas sobre a própria natureza dos seres humanos, ainda que você jamais tenha feito tais perguntas a si mesmo. Isso mexeu comigo de forma significativa, por muitos anos. Enquanto folheava a edição de uma conhecida revista cristã, fiquei impressionado com um anúncio colorido de um programa de memorização de versículos bíblicos. No centro do anúncio havia o rosto de um homem, com uma frase impressionante de uma ponta à outra de sua testa: “você é aquilo que pensa”. Essa é uma forma bastante explícita de declarar o que muitos de nós presumimos implicitamente.

É importante entender que estamos criticando aqui a redução da vida cristã ao intelecto e as apreensões derivadas de ensino formal. Claro que o discipulado é uma caminhada de aprendizado e perseverança na doutrina dos apóstolos (Mt 28.20; Jo 14.26; At 2.42; Ef 2.20 ss) e isso além de não ser desprezado por Cristo e os apóstolos, não o foi ao longo da história da igreja. Pessoalmente, tenho descoberto no teólogo norte-americano Jonathan Edwards a junção do intelecto e coração – ou afetos, para usar uma terminologia sua. Dotado de uma mente inquiridora e disciplinada, e acostumado a refletir sobre um tema até as suas últimas implicações, ele também foi um homem de espiritualidade profunda e transbordante, que teve como a maior das suas preocupações a celebração da graça e da glória de Deus. Sem abandonar a antropologia reformada tradicional, Edwards lhe dá novas ênfases e a expõe de maneira peculiar em sua reação aos postulados do arminianismo e do racionalismo. Como John H. Leith aponta, Edwards dá muito maior atenção à vontade humana do que o fez Calvino[i].  Em A Liberdade da Vontade, Edwards argumenta que a vontade não é uma faculdade independente, mas uma expressão da motivação humana mais fundamental. "Querer" algo é agir de acordo com os motivos mais fortes que existem no íntimo do indivíduo. O ser humano é moralmente livre para fazer o que lhe agrada, porém o que lhe agrada é determinado por motivos dos quais ele não é senhor[ii].  Mark Noll observa que o que Edwards faz aqui é argumentar de maneira agostiniana e calvinista que as ações humanas são sempre consistentes com o caráter humano[iii].

De formas mais “modernas” que bíblicas, fomos ensinados a acreditar que os seres humanos são fundamentalmente coisas pensantes. Embora talvez jamais tenhamos lido ou mesmo ouvido falar do filósofo francês do século 17 René Descartes, muitos de nós, inconscientemente, concordamos com sua definição da essência da pessoa humana como res cogitans: uma “coisa pensante”. Como Descartes, vemos nossos corpos como (na melhor das hipóteses!) veículos irrelevantes e temporários, que carregam por aí nossas almas ou “mentes”, que são o lugar onde a verdadeira ação acontece. Em outras palavras, imaginamos os seres humanos como aqueles bonecos cabeçudinhos, de cabeça gigante e corpo minúsculo e insignificante. Vemos a mente como o “controle da missão” da pessoa humana; nossos pensamentos definem quem somos. “Você é o que você pensa” é um lema que reduz os seres humanos a cérebros no palito. Ironicamente, essa coisificação do pensamento parte do princípio de que o “coração” da pessoa é a mente. “Penso, logo existo”, disse Descartes, e a maioria de nossas abordagens ao discipulado acaba copiando essa ideia.


[i] John H. Leith, An Introduction to the Reformed Tradition, ed. rev. (Atlanta: John Knox, 1981), 120.
[ii] John T. McNeill, The History and Character of Calvinism (Londres: Oxford University Press, 1954), 363.
[iii] Mark A. Noll, America's God: From Jonathan Edwards to Abraham Lincoln (Oxford University Press, 2005), 334.

Leitura recomendada:
#1 Sermão Sondando sua Consciência, de Jonathan Edwards, sermão disponível gratuitamente aqui
#2 John Piper, Pense: A vida da mente e o amor de Deus, Editora Fiel, 2011, disponível para compra aqui

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