O QUARTO MANDAMENTO - Por João Calvino (Parte II)

Por João Calvino




Nota do blog: O pensamento do reformador João Calvino não se limita à sua obra magna “As Institutas da Religião Cristã”, contudo, nas palavras da editora Fiel – responsável por uma edição das “Institutas” lançada recentemente, esse é “um livro digno de ser lido por todos os que zelam pela piedade, publicado por João Calvino em 1536, quando o reformador francês tinha apenas 27 anos”. Abaixo, seguem divididos em três artigos – para melhor leitura – um excerto da obra (trad. especial, Cultura Cristã, 2015) que trata sobre o 4° Mandamento da Lei de Deus.

Parte II/III


CRISTO, O PLENO CUMPRIMENTO DO SÁBADO

Se a alguém desagrada esta interpretação do número como sendo por demais sutil, nada impeço a que a tome em termos mais simples, a saber: que o Senhor estabeleceu um dia determinado em que o povo se exercitasse, sob a direção da lei, a meditar na inacessibilidade do descanso espiritual; que Deus designou o sétimo dia, ou porque previa ser o mesmo suficiente para isso, ou para que, proposta uma imitação de seu exemplo, melhor estimulasse o povo, ou, na realidade, o exortasse a não atentar para o sábado com outro propósito senão que o conformasse a seu Criador. Ora, pouco interessa que interpretação se adote, desde que subsista o mistério que principalmente se delineia: o referente ao perpétuo descanso de nossos labores.

Ao contemplar isto, os Profetas reiteradamente relembravam os judeus, para que não pensassem haver-se desincumbido da obrigação do sábado com a simples cessação física do trabalho. Além das passagens já referidas, assim tens em Isaías [58.13,14]: “Se apartares do sábado teu pé, para que não faças tua vontade em meu santo dia, e ao sábado chamares deleitoso e o dia santo do Senhor glorioso, e o glorificares, não seguindo teus caminhos e não fazendo tua vontade, de sorte que fales tua palavra, então te deleitarás no Senhor”, etc.

Mas, não há dúvida de que pela vinda do Senhor Jesus Cristo o que era aqui cerimonial foi abolido. Pois ele é a verdade, por cuja presença se desvanecem todas as figuras; o corpo, a cuja visão é deixada para trás as sombras. Ele é, digo-o, o verdadeiro cumprimento do sábado. Com ele, sepultados por meio do batismo, fomos enxertados na participação de sua morte, para que, participantes de sua ressurreição, andemos em novidade de vida [Rm 6.4]. Por isso, escreve o Apóstolo em outro lugar que o sábado tem sido uma sombra da realidade futura, e que o corpo, isto é, a sólida substância da verdade, que bem explicou naquela passagem, está em Cristo [Cl 2.17]. Esta não consiste em apenas um dia, mas em todo o curso de nossa vida, até que, inteiramente mortos para nós mesmos, nos enchamos da vida de Deus. Portanto, que esteja longe dos cristãos a observância supersticiosa de dias.

AINDA QUE CANCELADO, HÁ NO SÁBADO ASPECTOS VIGENTES

Com efeito, por isso é que nas velhas sombras não se devem numerar as duas causas posteriores que se enfeixam neste mandamento; ao contrário, convêm elas, igualmente, em todos os séculos, ainda que o sábado esteja cancelado, entre nós, não obstante, ainda tem lugar isto: primeiro, que nos congreguemos em dias determinados para ouvir a Palavra, para partir o pão místico, para as orações públicas; segundo, para que se dê aos servos e aos operários relaxação de seu labor.

Paira além de dúvida que, na preceituação do sábado, o Senhor teve em mira a ambas. Amplo testemunho tem a primeira, mesmo que seja só no uso dos judeus. A segunda gravou-a Moisés no Deuteronômio, nestas palavras: “Para que descanse teu servo, e tua serva, assim como também tu; lembra-te de que também tu mesmo foste servo no Egito” [Dt 5.14,15]. De igual modo, no Êxodo: “Para que descanse teu boi e teu jumento e tome alento o filho de tua serva” [Êx 23.12]. Quem há de negar que uma e outra nos convêm, exatamente como convinha aos judeus?

Reuniões de Igreja nos são preceituadas pela Palavra de Deus, e sua necessidade nos é suficientemente assinalada pela própria experiência da vida. Como se podem elas realizar, a não ser que tenham sido promulgadas e tenham seus dias estabelecidos? Segundo a postulação do Apóstolo [1 Cor 14.40], todas as coisas entre nós devem ser feitas decentemente e com ordem. Tão longe, porém, está de que se possa conservar a decência e a ordem, a não ser mediante esta organização e regularidade, as quais, se se desfazem, sobre a Igreja pairam mui presente perturbação e ruína. Pois se a mesma necessidade pesa sobre nós, em socorro da qual o Senhor constituíra o sábado para os judeus, ninguém alegue que ele não nos diz respeito. Ora, nosso providente e indulgentíssimo Pai quis prover à nossa necessidade, não menos que à dos judeus.

Por que, dirás, não nos congregamos antes diariamente, de sorte que, dessa forma, se ponha termo à distinção de dias? Prouvera que, de fato, isto se nos concedesse! E, por certo, a sabedoria espiritual era digna de que se lhe reservasse diariamente alguma porçãozinha do tempo. Mas, se pela fraqueza de muitos não se pode conseguir que se realizem reuniões diárias, e a norma da caridade não permite deles exigir mais, por que não obedeçamos à norma que nos foi imposta pela vontade de Deus?

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Institutas da Religião Cristã, Livro II, Cap. 8, seções 28-33.
Continua na próxima postagem

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