HUMILDADE: UMA VIRTUDE ESSENCIALMENTE CRISTÃ

Jesus lava os pés dos discípulos | Dirck van Baburen (1595-1624), óleo sobre tela.

Algumas pessoas têm problemas com conceitos. Acreditam que há uma antítese entre conceito (ou teoria) e prática (ou experiência). As Escrituras Sagradas, porém, deixam claro que as duas coisas não apenas podem, mas devem andar juntas. A Igreja de Corinto é, talvez o maior exemplo de uma comunidade que evidenciava a experiência (leia-se mais precisamente: uso dos dons), mas é chamada à atenção pelo apóstolo Paulo por não entenderem a fé e a natureza da igreja, de maneira que as duas epístolas aos Coríntios configuram-se como baluarte da ortodoxia aliada à ortopraxia¹. Em suma, toda reflexão bíblica ou teológica sempre precisou ser transportada do campo da reflexão para a prática funcional da vida cristã. O maior desafio da teologia cristã nunca esteve atrelado aos enfrentamentos apologéticos com relação às doutrinas heterodoxas, mas em aplicar na vida prática do discípulo de Cristo os ensinamentos bíblicos.

Ser humilde é ser inseguro?

Diante disso tudo, surge o conceito equivocado de que ser humilde significa estar inseguro ou incerto quanto a determinado tema, ou mesmo sobre a vida. Uma falácia conhecida a esse respeito diz que protestantes são arrogantes (oposto de humildes) por "se dizerem salvos". No entanto, as Escrituras ensinam acerca da certeza e segurança da salvação em Cristo (Jn 2.9; Ef 2.8,9; Jo 10.27-29; Rm 8.30-39; Jd 24,25, etc.). Diante dos textos bíblicos a afirmação cai por terra, mas se continuo afirmando que humildade tem a ver com ignorância e insegurança, logo desprezo que a verdade é quem deve balizar minhas ações diante de Deus (Jo 8.32; 17.17). 

O outro extremo também precisa ser destacado como conceito equivocado de humildade: ser humilde não significa ser o dono da verdade. Os escribas e fariseus arrogavam-se a posição de autoridades máximas na interpretação da Lei. Todavia foram chamados por Jesus de hipócritas (Mt 6.1-6). E ainda, no capítulo anterior de Mateus, Cristo é claro:
19 Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.
Fica claro que crer e viver é mais do que ser coerente, é cumprir a vontade (justiça) de Deus. Concluímos que ser humilde não tem a ver com ser ignorante acerca de Deus, mas conhecê-Lo e viver de acordo com esse conhecimento. "Pois assim diz o SENHOR à casa de Israel: Buscai-me e vivei" (Am 5.4).

Jesus: O paradigma de humildade

Agora que entendemos que humildade nada tem a ver com insegurança quanto à verdade e a vontade de Deus, vamos compreender o que de fato é ser humilde. Nosso ponto de partida sempre é as Escrituras Sagradas do Antigo e Novo Testamento. Nelas encontramos a altivez e o orgulho como condenáveis por Deus (Sl 5.5; 10.4; Pv 16.5; Am 6.8; 1Co 5.6; Gl 5.22,23, etc.), ao passo que a humildade é o padrão para aqueles que foram chamados para andar com Deus (Mq 6.8). Quem poderia exemplificar melhor a humildade voluntária do que o próprio Deus, que deixou sua habitação celestial para servir e mesmo morrer pelos homens pecadores? (Esta é a essência do apelo irresistível de Paulo em Filipenses 2:3-8).

Jesus ama a verdade, fala e vive por meio dela, e afirmou que Ele mesmo é a verdade (Jo 14.6). Todavia, não acanhou-se de também afirmar que era humilde e manso (Mt 11.28-30). Dois exemplos mostram claramente como Jesus ressaltava a humildade para seus discípulos. O primeiro está em Mateus 18:1-4. Os discípulos frequentemente disputavam entre si sobre a primazia uns sobre os outros. Dois deles uma vez foram tão ousados a ponto de pedir que fossem colocados acima de seus colegas no reino. Jesus respondeu à atitude deles chamando uma criança. Enquanto estes homens crescidos olhavam, Jesus começou a pregar um sermão memorável: 
"Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus" (Mateus 18:3-4).
O segundo exemplo, ainda mais tocante, é registrado em João 13:1-17. Quando se preparavam para partilhar a refeição da Páscoa, Jesus aproveitou o momento para ensinar uma lição necessária. Os discípulos jamais esqueceriam esta noite, e Jesus não perdeu a oportunidade para ensinar. Ele tomou uma toalha e  água e foi, de discípulo em discípulo, lavando seus pés. Isto era, por costume, serviço dos servos mais humildes, mas aqui o Criador do universo estava se humilhando diante de simples galileus. Quando terminou, ele voltou-se para os apóstolos e perguntou? "Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas cousas, bem-aventurados sois se as praticardes" (João 13:12-17).

5 Aplicações:

Podemos tirar algumas conclusões claras e importantes do ensinamento acima. Considere como o orgulho é absolutamente oposto às virtudes genuinamente cristãs. 
  1. Sem humildade, não serviremos outros como deveríamos, porque aqueles que são arrogantes e egoístas querem ser servidos, e não servir;
  2. Sem humildade, não seremos seguidores. Os orgulhosos querem ser chefes e cobiçam a posição e a influência de outros. Este foi o problema que Arão e Miriã tiveram em Números 12, e o mesmo pecado que custou as vidas de quase 15.000 pessoas, em Números 16;
  3. Sem humildade não buscaremos realmente a verdade. O homem orgulhoso pensa que já conhece as respostas, e não quer depender de quem quer que seja, nem mesmo do próprio Deus. A arrogância também impede nosso entendimento da verdade. Se não queremos admitir a necessidade de mudança, ou não queremos aceitar o fato que alguma outra pessoa sabe mais do que nós, nosso orgulho será um bloqueio fatal para o estudo eficaz da Bíblia.
  4. Sem humildade, não reconheceremos nossos próprios defeitos. Somos até capazes de enganar nossos próprios corações para não vermos nosso próprio pecado. Saul fez isto quando defendeu sua desobediência na batalha contra os amalequitas. Ele argumentou que tinha obedecido o Senhor e que o povo tinha errado (1 Sm 15:20-21). Deus não aceitou esta desculpa esfarrapada, e não aceita a nossa.
  5. Um outro problema relacionado com a arrogância é a dificuldade em aceitar a correção. Provérbios 15:31-33 mostra a conseqüência de tal orgulho: "Os ouvidos que atendem à repreensão salutar no meio dos sábios têm a sua morada. O que rejeita a disciplina menospreza a sua alma, porém o que atende à repreensão adquire entendimento. O temor do Senhor é a instrução da sabedoria, e a humildade precede a honra." Provérbios 12:1 é mais direto: "Quem ama a disciplina ama o conhecimento, mas o que aborrece a repreensão é estúpido."
Humildade nada tem a ver essencialmente com pobreza, miséria ou insegurança. Também não é uma espécie de 'utopia cristã', vivenciada por monges ou ascetas. Quando olhamos para o apóstolo Paulo percebemos que é viver de acordo com o que temos aprendido, sensíveis a aprendermos e amadurecermos mais. Quando olhamos para Cristo, percebemos que ser humilde é considerar os outros superiores a nós mesmos, mesmo que isso nos identifique como servos - e de fato, essa é a tônica - numa sociedade marcada cada vez mais pela autonomia e pelo egoísmo. Isso torna a humildade uma virtude essencialmente cristã.

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Ortodoxia – “orthos” (reto) e “dóxa” (opinião) é a crença correta; Ortopraxia -“órthos” (reto) e “praxe” (pratica) é a prática correta da crença (fé). 

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