TERIA JEFTÉ SACRIFICADO A PRÓPRIA FILHA? | por Alan Rennê
Sempre fiquei
maravilhado com a perfeição, perspicuidade das Sagradas Escrituras. Não
obstante, algumas passagens sempre me intrigaram em razão de debates e
discussões prévias a respeito das mesmas. Como exemplo disso, tomo a passagem
de Juízes 11.29-40, que narra a
história de Jefté, seu voto e sua filha. Especificamente, refiro-me aos
versículos 30 e 31: “Fez Jefté um voto ao
SENHOR e disse: Se, com efeito, me entregares os filhos de Amom nas minhas
mãos, quem primeiro da porta da minha casa sair ao encontro, voltando eu
vitorioso dos filhos de Amom, esse será do SENHOR, e eu o oferecerei em
holocausto”. O verso 39 diz: “Ao fim
dos dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo o voto por ele
proferido...”. Holocausto? Sacrifício humano?
Teólogos e scholars de todos os segmentos afirmam
que, de fato, Jefté não só votou que sacrificaria um ser humano como cumpriu o
que prometeu. A Bíblia de Estudo de Genebra, por exemplo, faz o seguinte
comentário a respeito da passagem em questão:
Jefté derrotou os amonitas, mas,
durante a batalha, fez um voto precipitado ao Senhor, com base no qual foi
obrigado a sacrificar sua filha querida como holocausto. Ao contrário dos
deuses pagãos, Deus não deveria ser adorado com sacrifícios humanos (Dt 32.17;
Sl 106.37-38). O voto imprudente de Jefté mostra como lhe faltava fé para
liderar; sem essa fé, sua casa não seria estabelecida.
[1]
Dentre os muitos colaboradores
responsáveis pelos comentários da Bíblia de Estudo de Genebra, destacam-se
homens como Mark Futato (Reformed Theological Seminary), R. Laird Harris
(Covenant Theological Seminary), Meredith Kline (Gordon-Conwell Theological
Seminary), Tremper Longman III (Westmont College), Raymond C. Ortlund Jr.
(First Presbyterian Church of Augusta), Richard L. Pratt Jr. (Reformed
Theological Seminary) e Bruce K. Waltke (Reformed Theological Seminary). Não
sei exatamente quem escreveu os comentários do livro de Juízes. No entanto, sei
que tal interpretação passou pelo crivo do editor responsável pelo Antigo
Testamento, o Dr. Bruce K. Waltke, e do editor-geral, o Dr. Richard L. Pratt
Jr. [2]
Sempre que lia a
passagem em questão me sentia desconfortável com a ideia de que Jefté teria
oferecido a sua filha como um holocausto. Eu pensava: “Mas Deus jamais
aceitaria um voto nestes termos! ” Apesar de não aceitar tal entendimento, eu
não dispunha de argumentos exegéticos satisfatórios que fundamentassem minha
discordância.
Recentemente,
adquiri um livro junto à Reformation
Heritage Books, de autoria do Dr. Joel R. Beeke, intitulado Contagious Christian Living (Viver
Cristão Contagiante). O primeiro capítulo do livro é dedicado à submissão
sacrificial da filha de Jefté. Gostaria de compartilhar com o leitor do Cristão
Reformado oito razões apontadas pelo Dr. Joel Beeke, que mostram que o voto de
Jefté não foi precipitado nem que ele sacrificou a sua própria filha. Mais uma
vez, peço que o leitor seja misericordioso com a tradução. Transcrevo na
íntegra abaixo:
Compreendendo
Mal o Voto de Jefté [3]
Antes de
tirarmos conclusões apressadas, deixe-nos dar uma olhada mais íntima na
passagem. Quando terminarmos, descobriremos que Jefté não fez um voto apressado
e tolo, e que ele não ofereceu a sua filha como um holocausto. Isto vai contra
algumas antigas interpretações desta história. Alguns comentaristas afirmaram
que Jefté viveu em tempos difíceis e que, indubitavelmente, foi influenciado
por ideias pagãs, as quais incluíam sacrifícios humanos e suborno aos deuses, a
fim de se conseguir seus favores. De acordo com esta antiga visão, Jefté deu
vazão a estas ideias pagãs e, por isso, deve ser menosprezado.
Entretanto, examinando esta
narrativa de perto, podem ser percebidas oito questões no contexto que, tomadas
em conjunto, conduzem-nos para longe daquela suposição de que Jefté sacrificou
a sua filha.
Em
primeiro lugar, Jefté não era um homem precipitado.
Jurar que você sacrificará qualquer pessoa que saia de sua casa para o
encontrar pode ser precipitado. Porém, Jefté já tinha provado aos anciãos de
Israel e ao rei dos Amonitas que era um homem cauteloso. Um pouco antes, Jefté
não atendeu prontamente o pedido dos anciãos para se tornar o líder de Israel,
mas, cuidadosamente, os questionou a fim de descobrir, primeiramente, os seus
motivos e intenções. Ele também não se precipitou na batalha, mas enviou
mensageiros aos Amonitas em uma tentativa de encontrar uma alternativa
diplomática em vez da guerra, para pleitear a justiça da causa de Israel.
Segundo,
em suas discussões com os Amonitas, Jefté demonstrou sua familiaridade com as
Escrituras. Seguramente, então, ele devia ter conhecimento de que Levítico
18.21 e Deuteronômio 12.29-32 proíbem o oferecimento de sacrifícios humanos –
especialmente seus próprios filhos – como uma abominação diante de Deus. Em
adição, Juízes 11 está colocado em um contexto de reforma. Israel, incluindo
Jefté, tinha se arrependido e voltado para – não para longe – o Deus vivo.
Terceiro,
quando Jefté fez o seu voto, o Espírito de Deus estava sobre ele. O Espírito o
inspiraria a fazer um voto que contrariasse tão claramente a Escritura revelada
pelo próprio Espírito? Isso é difícil de acreditar, desde que a Palavra e o
Espírito nunca contradizem um ao outro. Também é difícil acreditar que Israel
tivesse seguido a Jefté como um líder se ele tivesse desobedecido a Escritura
de forma tão notória e se tivesse, de fato, sacrificado a sua filha.
Quarto,
olhemos mais de perto Juízes 11.31, que diz: “quem primeiro da porta da minha
casa me sair ao encontro, voltando eu vitorioso dos filhos de Amom, esse será
do SENHOR, e eu o oferecerei em holocausto”. Uma possível opção para essa
tradução é lembrar que holocausto em hebraico nem sempre significa
sacrifício-sangrento. A palavra hebraica também pode significar “total
dedicação”. Neste caso, o voto de Jefté teria sido: quem sair da porta da minha
casa “será do SENHOR, e eu o oferecerei para uma completa dedicação ao SENHOR”.
Outra questão de tradução nos
impede de entender a passagem corretamente. O último verso de Juízes 11 diz que
as filhas de Israel iam anualmente para “lamentar” a filha de Jefté. A palavra
traduzida aqui como “lamentar” não é traduzida deste modo em nenhum outro lugar
na Bíblia. Ao invés disso, ela é entendida como “ensaiar” ou “comemorar”.
Assim, as filhas de Israel não lamentaram a morte da filha de Jefté. Elas
comemoraram sua dedicação ao serviço de Deus, o qual envolvia a submissão total
do seu coração.
Quinto,
depois de derrotar os Amonitas e encontrar a filha, Jefté teve bastante tempo
para ponderar acerca do que faria. Ele concedeu à sua filha dois meses para que
ela lamentasse a sua virgindade. Você não acha que, se realmente Jefté
pretendesse sacrificar a sua filha, os sacerdotes de Siló teriam vindo até ele
durante aquele tempo a fim de o lembrarem da proibição divina relativa a
sacrifício humano?
Sexto,
mesmo se o voto de Jefté tivesse sido precipitado, Levítico 5.4-5 lhe oferecia
a possibilidade de se arrepender de tal voto e Levítico 27 a possibilidade de
Jefté redimir a sua filha mediante o pagamento de um resgate. Mesmo assim,
Jefté recusou essas opções.
Sétimo,
quando a filha de Jefté foi lamentar por dois meses, ela não lamentou a sua
morte iminente, mas sim a sua virgindade perpétua (Juízes 11.38).
Finalmente, note que Jefté é
recomendado em vez de ser repreendido na Escritura. Ele governou sobre Israel
durante outros seis anos. E 1 Samuel 12.11 menciona Jefté como um dos que
mantiveram Israel a salvo. Samuel teria recomendado Jefté se ele tivesse
sacrificado a própria filha? Mais importante, Hebreus 11.32 menciona Jefté como
um herói da fé em lugar de uma figura pagã desprezível.
Em conclusão, então, Jefté não
prometeu matar sua filha, mas a dedicou ao serviço de Deus, o que envolveu o
desafio notável da sua virgindade perpétua. É o que diz o versículo 39, que ele
levou a cabo o seu voto, mas não adiciona, “e ela morreu”. Ao invés disso, diz
que, “ela jamais foi possuída por varão”. Jefté cumpriu o seu voto assim porque
a sua filha viveu o resto da vida como uma virgem.
Fonte:
Joel R. Beeke, Contagious Christian Living. Reformation
Heritage Books and Pryntirion Press, pp. 12-16.
Publicado em Cristão Reformado, blog do Reverendo Alan Rennê Alexandrino, no dia 19 de maio de 2010, link disponível aqui.
Publicado em Cristão Reformado, blog do Reverendo Alan Rennê Alexandrino, no dia 19 de maio de 2010, link disponível aqui.
_____________________
[1] BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA,
(São Paulo: Cultura Cristã, 2009), 327. Edição Revista e Ampliada.
[2] Conferir também a afirmação de
H. A. Hoffner Jr., in Merrill C. Tenney, Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã,
Vol. 3, (São Paulo: Cultura Cristã, 2008), 394.
[3] Joel R. Beeke, Contagious
Christian Living, (Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books and Brytirion
Press, 2009), 12-16. Minha tradução.
[i] Bacharel em Teologia pelo
Seminário Teológico do Nordeste, em Teresina (2005); Bacharel em Teologia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009); Mestre em Teologia (Sacrae Theologiae Magister) com
concentração em Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia
Sistemática no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (2015);
pastor da Igreja Presbiteriana do Cruzeiro do Anil, em São Luís-MA.
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