O AMOR NA ERA DA RELATIVIZAÇÃO


Uma das marcas da pós-modernidade (como é definido, pela maioria dos estudiosos da área) é a relativização dos valores¹. Entretanto, é importante notar que a relativização de valores, que em si mesma já é um mal, não se constitui o final do processo de degeneração moral por que passa a humanidade, mas é apenas uma etapa para se chegar à conclusão lógica de sua implementação. A relativização dos valores, grosso modo, é tão somente o primeiro passo para a inversão de valores.

Primeiro, se relativiza o valor para, depois, substituí-lo por outro com o qual foi equivocadamente equiparado no processo de relativização. Quer um exemplo? A defesa do homossexualismo por pessoas que se dizem cristãs. O cristianismo se baseia nas Escrituras Sagradas do Antigo e Novo Testamento, que foram divinamente inspiradas por Deus e formam o pressuposto fundamental do cristão. Nelas (Escrituras Sagradas) o conceito de família é claro, definido e absoluto – palavra que causa coceira no ouvido de muitos –: heterossexual e monogâmico. Como pode então, alguém que se diz cristão querer coadunar as relações homo-afetivas com o que diz as Escrituras a esse respeito? No mínimo incoerente, para não dizer impossível – e de fato o é! O fim desse discurso é produzir na sociedade uma busca pelo politicamente correto em detrimento da verdade. 

"Deus é amor", etc. e tal

A relativização de valores teve consequências bem mais profundas, como todos sabemos. Ao reduzir os princípios cristãos essenciais do Bem e do Mal a meros conceitos subjetivos, esta tática reduz também Deus a uma simples construção filosófica ou, conforme a doutrina da moda, a um fenômeno social. Moda. 'Guarde' essa palavra! Creio que moda resume bem o comportamento, grosso modo, de uma sociedade que não pensa (reflete, pondera...), mas apenas reproduz. Uma passagem bíblica - sim, muitos desconhecem a fonte - bastante reproduzida e diametralmente desconhecida/distorcida é 1 João 4:8, especialmente a parte b do verso: "Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (grifo meu).

É fácil sacar um trecho e acrescentar pressupostos que nada condizem com o contexto imediato do texto, muito menos com o corpus do qual ele faz parte. De fato, Deus é amor, mas não é possível definir amor aqui com um viés sentimentaloide. O amor pregado por esse século é fugaz, com um fim em si mesmo e dissociado de Deus. De acordo com essa visão, a conclusão a que se chega é que amar significa aceitar por completo sem discordar. Como veremos adiante, o cristianismo não funciona dessa maneira, uma vez que Cristo veio buscar e salvar o que estava perdido (Lucas 19.10).

Olhando 1 João 4 mais de perto

Vejamos, então, o que diz todo o texto:
1 Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora. 2 Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; 3 e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. 4 Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo.5 Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. 6 Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro. 7 Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.8 Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor. 9 Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele. 10 Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. 11 Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros. 12 Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é, em nós, aperfeiçoado. 13 Nisto conhecemos que permanecemos nele, e ele, em nós: em que nos deu do seu Espírito. 14 E nós temos visto e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo. 15 Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele, em Deus. 16 E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele. 17 Nisto é em nós aperfeiçoado o amor, para que, no Dia do Juízo, mantenhamos confiança; pois, segundo ele é, também nós somos neste mundo. 18 No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor. 19 Nós amamos porque ele nos amou primeiro. 20 Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. 21 Ora, temos, da parte dele, este mandamento: que aquele que ama a Deus ame também a seu irmão.

O texto se inicia com um imperativo como advertência: provai. Com isso, o apóstolo João estabelece os critérios para o referido exame, a saber, que doutrina (ensino) procede de fato de Deus ou não. O crivo apostólico, obviamente, é estabelecido pela Cristologia (doutrina de, ou acerca de Cristo). Trocando em miúdos, o que João afirma é que pode-se facilmente discernir entre uma cosmovisão e outra observando se Cristo - sua encarnação (v. 2), morte vicária (v.10), ressurreição, ascensão e glorificação (v.v. 13-17) é o ponto central da crença.  O amor é uma atitude derivada - porque Cristo nos amou primeiro (v. 10), realizando sua obra propiciatória (perdão) àqueles por quem morreu e ressuscitou. Logo, quem ama, não ama de si mesmo, mas porque soberana e sobrenaturalmente, Deus o regenerou quando este era morto nos seus delitos e pecados (Efésios 2). Tudo o mais está subordinado a isso, a cruz é o centro de onde tudo e todos gravitam e de onde o amor perfeito procede. Insisto, como é sempre o caso no Novo Testamento, "nós" como objetos e beneficiários do amor redentor significa "nós que cremos" (Romanos 8.39; 1 João 4.13).

Considerações Finais

Quando sou redimido por Cristo creio e passo a viver por Ele e para Ele. O amor ao dinheiro não me preencherá (1 Timóteo 6.10); o amor ou apego aos bens me tornará ansioso tal qual os ímpios (Mateus 6.19-34); o amor ao próximo me mobilizará à medida em que eu amo a Deus de toda a minha alma, força, coração e entendimento (Deuteronômio 6.5; Mateus 22.35-40; 1 João 4.7,20-21). Amar sempre está associado à redenção e não a conivência com o pecado. Jesus foi contado entre pecadores e publicanos, mas sempre visava redimi-los, pois essa era a sua missão (Mateus 9.10-13). Portanto, é errado e leviano, associar o amor de Deus para apoiar uma cosmovisão centrada no homem e seus apetites. É engano e no mínimo incoerente tentar fundamentar práticas e uma perspectiva hedonista do amor Àquele que suportou a cruz em troca da alegria que lhe estava proposta (Hebreus 12.2). O verdadeiro amor cristão leva ao reconhecimento e confissão de pecados e tem como resultado a restauração e confiança de quem foi perdoado (1 João 4.18) por Deus. Daí se baseiam todas as relações, em que Cristo é o início e o fim de todas as coisas.

Quem tem ouvidos para ouvir?

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¹Para mais detalhes, sugiro VEITH, Gene Edward Jr. Tempos pós-modernos: Uma avaliação cristã do pensamento e da cultura da nossa época. Cultura Cristã, São Paulo, 1999, 240 p.

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