A FÉ NA ERA DO CONSUMISMO

"Porque onde estiver teu tesouro, aí estará também teu coração". (Mateus 6.21)
"Na década de 50 nós consumíamos 5 vezes menos do que hoje e não éramos menos felizes por isso. Na década de 70, cerca de 70% das famílias dependiam apenas de uma renda para manter-se. Hoje, mais de 70% das famílias dependem de duas rendas para manter o mesmo padrão. Ou seja, o luxo do ontem tornou-se necessidade do hoje. O consumismo tem sido uma ditadura implacável. Mas, o que é consumismo? É você comprar o que você não precisa, com o dinheiro que você não tem, para impressionar as pessoas que você não conhece". (Hernandes Dias Lopes).

A citação acima não traz nenhuma novidade a uma geração tão exposta a informação como a nossa. É justamente aí que mora o perigo. Somos estimulados a lidar apenas com o que é novo, atualizado ou, no mínimo, recente, desprezando assim fatos e ensinamentos que podem nos ajudar no presente.  Se você ultrapassou essas linhas sem abrir uma aba em seu navegador de internet é prova de que embora já tenha lido inúmeros artigos a respeito, deseja relembrar ou aprender um pouco mais. 

Longe de ser um simples manual do usuário, do qual se lança mão quando não se consegue resolver determinados problemas, a Bíblia nos alerta - séculos e séculos antes de McDonald's, Coca-Cola Tommy Hilfiger - que ansiar por comida, bebida e vestuário é deixar de discernir o devido valor das coisas: "Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que o vestuário?" (Mateus 6.25b)[1]. E também, no mesmo texto, complementa: Qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar sequer uma hora à duração de sua vida?[2] A relação dinheiro-necessidades-ansiedade é tratada desde o verso 19, chegando ao clímax nos versos 21Porque onde estiver teu tesouro, aí estará também teu coração. e 24Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.[3](grifo meu).

Jesus falou sobre dinheiro e tratou sobre o coração

Dinheiro foi um dos assuntos que Jesus mais abordou em seus ensinos, embora, normalmente, sua
preocupação não era simplesmente a de dar orientações financeiras aos que o ouviam. Ao utilizar fatos e parábolas envolvendo riquezas e bens materiais, Ele ilustrava os princípios e valores espirituais mais importantes que queria transmitir, de modo que as pessoas pudessem entender. Sabendo o quanto o coração das pessoas está inclinado a valorizar e a amar o dinheiro, o Mestre confrontava os pecados delas, mostrava o quanto estavam distantes da verdade de Deus e indicava o caminho certo a seguir. Diferente do que se vê na teologia da prosperidade, Jesus não ensina a "ganhar dinheiro" nem a buscar ascensão social. Por isso, não gastarei tempo tratando sobre práticas deploráveis e absolutamente antibíblicas adotadas por seitas e líderes hereges.

O fato, repito, de Cristo ter mencionado dinheiro e bens em seu discipulado denota o quão suscetível é o nosso coração à fascinação do ter. Jesus sonda e enfoca o coração (Marcos 7.19). Nada em seu ensino é sem intencionalidade e proveito. Por isso, muito embora os significado dos termos sejam muito semelhantes, é bom fazermos a distinção entre falar e tratar. Nesse sentido, o Senhor falou (mencionou, citou, tocou...) sobre dinheiro, mas tratou (esmiuçou, detalhou, conduziu...) sobre o coração do homem.

Espiritualidade e consumo

Diante disso tudo, chegamos a uma conclusão óbvia: se sirvo ao dinheiro - ao invés dele me servir - e
vivo ansioso, passo a equacionar a existência sob a mesma lógica do mercado, desenvolvendo uma espécie de espiritualidade (ou poderíamos) cuja relação oferta-demanda é o cerne de tudo. Trocando em miúdos, por espiritualidade, em definição simples, traduziria por meu relacionamento com Deus. Ansioso, insatisfeito ou descontente, passo a criar novas e mais sofisticadas necessidades, que uma vez não atendidas reiniciam o ciclo de insatisfação. Nessa perspectiva, a fé torna-se uma espécie de despachante, que por sua vez recorre a um grande balcão de serviços (Deus), que está sempre pronto a atender a clientela (crentes). Ainda nessa cosmovisão, somos capazes de medir nossa caminhada não nos critérios e padrões divinos, conforme Efésios 4.13, mas segundo os valores do consumismo: se tenho/recebo, logo estou bem; caso contrário, não estou bem.

Perceba que no texto bíblico chave que tratamos acima, antes de Jesus elencar as necessidades básicas ao ser humano, alimentação e vestuário (vv. 25-34), notadamente no verso 21, temos o resumo de todo o ensinamento de Jesus na passagem inteira, como bem colocou Hendriksen:
"Naturalmente, se o verdadeiro tesouro de uma pessoa, seu derradeiro propósito em todos os seus esforços, é algo que pertence a esta terra - a aquisição de dinheiro, fama, popularidade, prestígio, poder -, então o seu coração, o próprio centro de sua vida (Pv 4.23), será completamente absorvido por esse objetivo mundano."[4]
Tudo o mais depende de entendermos de uma vez por todas que nosso coração é governado por algo ou alguém, e a chamada do evangelho é destronarmos nossos ídolos e sermos guiados por Cristo tal qual um barco à vela é levado pelo vento. É fácil? O discipulado começa com negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir. Não me parece uma vocação fácil. Nem tampouco impossível, uma vez que Aquele que começou a boa obra em minha vida é fiel para completá-la até o grande dia da volta de Cristo (Filipenses 1.6).

Não há nada de errado em comer bem, vestir-se de modo apropriado para as ocasiões ou trocar de carro quando possível. O problema reside em depositarmos todo nosso tempo e esforço nessas aquisições. O caminho para a adoração passa pela satisfação, tal qual apregoa John Piper: Deus é mais glorificado em mim quando sou mais satisfeito n'Ele. Essa satisfação reside no fato de podermos usufruir de todas essas coisas que mencionei antes, mas buscarmos sistemática e compromissadamente priorizar a glória de Deus em nossas vidas ainda que não tenhamos hoje, ou mesmo nunca, o que desejamos e sonhamos. 

Tal qual o condicionamento físico, precisamos de exercícios nessa área. Por isso, é importante assumir uma postura crítica para consigo mesmo todas as vezes em que os apelos do consumo baterem à porta. 
  • Realmente preciso disso? 
  • Posso viver e/ou desempenhar minha rotina diária sem isso? 
  • O que aconteceria se eu o (a) perdesse? 
  • Adquirir tal coisa e/ou produto me fará quebrar ou faltar com compromissos firmados anteriormente? 

São perguntas corriqueiras a se fazer e responder no dia-a-dia, incutindo no coração que gratidão e satisfação são expressões de louvor e adoração ao Senhor.

Deus nos abençoe.

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Notas:
[1]Todos as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Século 21 (A21). Disponível online aqui.
[2]Literalmente: um côvado à sua estatura? | Um côvado = 45 cm. (medida utilizada no período neotestamentário).
[3]Literalmente: Mamon.  Termo usado para descrever riqueza material ou cobiça, na maioria das vezes, mas nem sempre, personificado como uma divindade. A própria palavra é uma transliteração da palavra hebraica "Mamom" (מָמוֹן), que significa literalmente "dinheiro".
[4]HENDRIKSEN, W. Comentário do Novo Testamento: Mateus, vol. 1, Cultura Cristã: São Paulo-SP, 2001, p. 487. 

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