E ESSE TAL DE FEMINISMO? | por Isabella Passos
por Isabella Passos*
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Montagem em ".GIF" de V-Jay Day in Times Square, fotografia de Alfred Eisenstaedt |
A fotografia todo mundo conhece. V-J Day in Times Square é
aquela famosa imagem de um marinheiro norte-americano beijando uma jovem
enfermeira naquela famosa avenida de Nova York. Essa mesma que ilustra o texto.
A foto correu o mundo em 1945 através de uma edição da Revista Time
transformando o beijo de dois desconhecidos em símbolo da alegria popular pelo
fim da II Guerra Mundial. Da foto nasceu uma escultura de 7 metros de altura
que se encontra hoje instalada em San Diego, Estados Unidos. É uma bela foto e
também uma bela escultura, mas …. Em 2014 um grupo feminista francês chamado Osez Le Feminisme, abriu uma petição
pública exigindo que a escultura icônica fosse removida de uma exposição por se
tratar, segundo o grupo, do registro de uma agressão sexual, de um crime, uma
vez que o marinheiro não tinha o direito de beijar a enfermeira, mesmo ela
tendo comentado que havia gostado do beijo. Ces
la vie! Reportagem aqui.
Por essas e outras histórias (e estórias), o feminismo – nome
popular para o Movimento de Emancipação das Mulheres, entrou na pauta das
discussões dos principais meios de produção de conhecimento, assim como entrou
também nas discussões mais corriqueiras da cultura através dos principais
jornais, revistas e desenhos infantis de nossa época. Feminismo é conversa
séria de programas transmitidos no começo de uma tarde dominical como aconteceu
no programa da Regina Casé que teve como pautas assuntos como assédio moral,
violência física, mercado profissional, autonomia econômica, estética feminina
depois de uma chamada da apresentadora de que “as mulheres estão cansadas de
serem tratadas como cidadãs de segundo classe”.
Mas entender o feminismo significa ter presente os diferentes
momentos pelos quais passou a construção de suas diferentes identidades.
Historiadores não estão bem certos se podemos falar de um movimento unívoco com
uma epistemologia própria ou se o feminismo na verdade seria um fenômeno com o
agrupamento de muitos movimentos de diferentes ideias e ações. Para maioria, a
segunda posição é a mais adequada, pois, segundo eles, poderíamos no máximo
captar características comuns dos diferentes feminismos. Isso porque, mesmo
havendo uma gramática de reivindicações parcialmente comum conforme a época e
as principais vozes, há divergências no modo como as reivindicações poderiam
ser alcançadas a partir do ponto da justificativa do problema. Há feminismos de
orientação individualista, liberal, radical ou marxista. E o modo como se
organizam e as bandeiras que levantam como problemas fundacionais mudam
sutilmente sua identidade cultural.
No Brasil os feminismos de vieses marxista e psicanalíticos
parecem sobressair sobre os demais. Inclusive, parecem mesmo se
inter-relacionarem. Os argumentos giram no sentido da importância do gênero e
da luta de classes, analisando os modos como dois eixos paralelos, economia
(capitalismo) e família (patriarcado) estruturam a vida das mulheres. Uma
perspectiva ético-racial também tem ganhado força nos últimos dias. Por sua
vez, as feministas de tendências psicanalíticas centram suas discussões na
sexualidade como uma poderosa força cultural e ideológica ao postularem que as
mulheres são oprimidas pelo fato desta força cultural ideológica da diferença
sexual estar inscrita nos corpos e no inconsciente.
Mesmo não havendo espaço aqui para detalhar os vários períodos
e identidades do feminismo, vale destacar a importância da sua primeira fase,
nascida ali no século XVIII com a Declaração dos direitos da mulher e da
cidadã, de Olympe de Gouges. Este é um período onde as mulheres não podiam
assinar contratos, herdar propriedades, contratar advogados, votar e ter
direitos sobre os filhos. Pelas leis da Inglaterra, por exemplo, o marido e a
mulher eram uma só pessoa jurídica e a existência legal da mulher estava
constituída na pessoa do marido, cuja a asa, proteção e tampa, ela executava a
maioria das coisas do domínio público. A ‘complexificação’ da sociedade
demandava maior participação das mulheres na cena pública e um “novo homem” se
constituía em sociedade através da ideia de cidadão. Era mais do que necessário
que as mulheres se apresentassem marcando que este “novo homem” na verdade era
homem e mulher. Neste estágio inicial, o movimento das mulheres se concentrou
no sufrágio e se manteve inter-relacionado ao Movimento de Temperança
(movimento de mulheres conservadoras pouco comentado pelos compêndios
feministas) e ao Movimento Abolicionista. Este talvez seja o momento mais
profícuo e importante das reivindicações femininas como movimento. Era onde
nascia o modelo de sociedade e cidadania tal como a conhecemos e onde a
bandeira da igualdade não se articulava sobre um discurso de oposição entre
homens e mulheres, tal como vemos nos últimos dias.
Na teologia, segundo Ivone Gebara, freira católica, filósofa e
teóloga feminista brasileira, a teologia feminista se tornou parte de uma
revolução cultural que, segundo ela, ainda está em seus primeiros passos, tendo
se desenvolvido a partir da segunda metade do século 20 inicialmente em alguns
países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos e a partir de 1980 na América
Latina, África e Ásia, muito na esteira do espírito revolucionário presente na
Teologia da Libertação. A trabalho das teólogas feministas, parte do ponto de
que há uma dominação do ídolo divino masculino que marca e limita a vida das
mulheres e o principal desafio dessa teologia é introduzir a metodologia da
suspeita e da desconstrução de conceitos teológicos (Deus Pai, Deus Filho, Deus
Espírito Santo, Pecado, Bem e Mal, Encarnação, Redenção e outros) verificando a
origem e a pertinência em relação à experiência histórica e feminina. Esse
trabalho é feito através da investigação dos textos da Bíblia considerados
Palavra de Deus e da denúncia do mau uso do texto em vista da execução de
políticas que favorecem a uns e desfavorecem a outros. Tudo na redução dualista
de uma oposição em eventos que sempre podem apontar alguma trapaça. Não pode
dar certo algo que começa pela pura suspeita e desconstrução, pode?! Aqui
estamos na segunda para a terceira fase do momento feminista. Onde o discurso
começa a pesar pela radicalidade de algumas posições.
Vejamos o que falou a feminista cristã Mary Daly, na faculdade
de teologia da Universidade de Harvard:
“indo direto ao assunto, proponho que castremos o Cristianismo e joguemos fora os frutos da sua arrogância masculina: os mitos do pecado e da salvação, que são simplesmente sintomas diferentes da mesma doença… Minha opinião é que a ideia de que a salvação veio ao mundo exclusivamente através de um salvador masculino perpetua o problema da opressão dos homens sobre as mulheres… o que está acontecendo hoje é que as mulheres estão se rebelando para castrar o sistema masculino que as castra e coloca Deus como “Pai” de todas as pessoas”. Outra disse ainda: “se a religião cristã não dá às mulheres recursos espirituais e intelectuais para que elas sintam satisfação em ter um emprego fora de casa, então talvez precisemos eliminar as imagens de família que enchem a Bíblia – começando com Deus como Pai e sua semelhança terrena, o pai de família”.Essas duas falas se encontram no livro De Volta ao Lar: do feminismo a realidade, de Mary Pride e as suas escolhas se apresentam como uma tentativa de chamar atenção para o perigo da adoção de certas posições sem uma crítica adequada do assunto.
Susan
T. Foh, em seu livro Women and the Word
of God: A Response to Biblical
Feminism, traduz essas falas de forma bastante perspicaz. Diz ela:
“a questão mais importante que as feministas evangélicas debatem é de que modo a Bíblia deve ser interpretada… Elas acham que já a Bíblia foi escrita numa cultura onde a liderança pertencia totalmente ao pai de família, essa cultura influenciou os escritores da Bíblia a ter preconceitos contra os direitos das mulheres… De acordo com essa maneira de ver, há falhas e contradições na Bíblia. Aliás, essa opinião exalta a razão humana, pela qual o ser humano decide o que é e o que não é a palavra de Deus…. Para resumir, as feministas evangélicas veem contradições irreconciliáveis nos ensinos da Bíblia sobre as mulheres. Elas resolvem essas contradições reconhecendo que a Bíblia reflete as limitações humanas… as feministas evangélicas não acreditam que Deus nos deu sua palavra, que é verdadeira e digna de confiança, padrão imutável de fé e prática. Para elas, a Bíblia é uma mistura de informações (parte é a pura Palavra de Deus e parte sãos somente conselhos de homens moldados por sua cultura machista), e Deus nos deu a liberdade para imaginar quais as partes em que devemos acreditar e obedecer. A razão humana se torna a autoridade suprema, o juiz da Bíblia”.
Onde
ficou o critério de verdade em posições como essas?
Assim, podemos ensaiar uma primeira pergunta: é possível ser uma feminista cristã? Primeira coisa é
entendermos que as crenças e convicções dentro do feminismo são muitos amplas,
variadas e em alguns momentos contraditórias para que nos permita um julgamento
final. Ideologias feministas se mostraram boas, neutras ou ruins, dependendo da
especificidade da reivindicação quando colocada diante das crenças fundamentais
da bíblia e de uma boa teologia moral e prática.
As boas e neutras e que aparecem nas reivindicações feministas
mais antigas são aquelas que dizem respeito às mulheres serem respeitadas por
si mesmas, sustentarem seus filhos, a terem direito sobre eles e serem
respeitadas na situação de viuvez ou divórcio. Ensinamentos e ações de Jesus
sinalizaram o respeito que as mulheres deveriam receber. Ele perdoou as
mulheres de má reputação (João 8:1-11), falou respeitosamente a mulher
samaritana (João 4: 4-42) e interagiu com uma mulher impura (Mateus 9:20-22).
Paulo também fez o reconhecimento de 10 mulheres em 26 pessoas que nomeou no
capítulo 16 da carta aos Romanos, além de chamar primeiro Priscila, esposa de
Áquila, para publicamente agradecer-lhes a própria vida. Tanto Paulo quanto
Jesus realizando aqui ações em franco desacordo com o sistema religioso da
época sem, no entanto, deixar de denunciar o pecado das condutas individuais
das mulheres, assim também, como fazia com os homens. O que não ocorre em
nossos dias, por exemplo. Falar de erro dentro de feminismo em vista de uma
fala ou ação claramente demarcada é falta de sonoridade ou método de
desmerecimento do movimento. Pecado mortal e sem direito a perdão! Se houver
ainda alguma dor ou trauma relacionado… esquece. Não há diálogo. Está tudo
justificado, inclusive, com a imposição normativa do silêncio do outro. Faça da
sua dor, a sua luta é o mote. Mas quem sabe chegará o dia que descobrirão que a
dor não é um bom juiz e que sexo masculino e abusador não são necessariamente
uma e mesma coisa?
Entre as ideologias ruins, pode-se destacar a crença de que as
mulheres são mais importantes do que os homens (feminismo radical/ Matriarcado)
e a de que mulheres e homens não teriam identidades (feminismo quer) orientadas
já no evento da criação de Adam/Adão (homem e mulher), lá nos primórdios da
humanidade. Essas são prerrogativas inquestionavelmente anticristãs mesmo que
hajam grupos propondo leituras mais pluralistas desses e de outros princípios.
Será mesmo que tudo é construção social e a identidade de gênero, a orientação
sexual, o sexo biológico e o papel de gênero são coisas não-coincidentes e más
às engrenagens sociais? Alas do atual feminismo, ou do pós feminismo para
alguns, dizem que sim, como é o caso de Judith Butler, mas antropólogos como
Mary C. Kuhn e Steven L. Stiner, da Universidade do Arizona, acreditam que foi
exatamente a divisão de tarefas entre homens e mulheres que fizeram com que o
homo sapiens vencesse os neandertais na luta pela sobrevivência. Há benefícios
fáticos na família tal como a conhecemos e exceções devem ser tratadas como
exceções e não como regras. Isso vale para ciências, mas também vale para os
comportamentos. Também não podemos mais desconsiderar as descobertas vindas de
áreas associadas às ciências biológicas sempre muito pouco comentadas nas
discussões de moralidade e política. Não se enganem, há mais mistérios entre o
céu e a terra do que supõem nossas vãs ciências sociais.
Com isso, assim como acontece a qualquer movimento, grupo
político ou teoria, devemos julgar suas ações e mensagens por seus próprios
méritos. Devemos julgar por aquilo que é dito em bloco e em seu próprio tempo,
além claro, de julgar ações e mensagens individuais daqueles que postulam ser
seus representantes. O que o feminismo diz defender em nossos dias? Quais os
meios têm sido usados? Este é um dado importante. Avaliadas essas questões, se
você acha que há ações e meios que possam ser legitimados em vista do tempo,
das pessoas envolvidas e independentes da compreensão bíblica avaliada,
testada, balizada e consensuada pela tradição, formada por homens e mulheres,
sinto muito, mas talvez você esteja mais pautada por uma visão feminista de
mundo do que uma visão cristã do mundo e do feminismo. Sabe aquela história de
que ‘sou contra o aborto, mas acho que deveria ser legalizado de forma
irrestrita por causa das mulheres pobres’? Enfim, vale pensar, repensar,
avaliar, colocar diante da história chamada eternidade e pedir que Deus seja
gracioso com todos nós. E se nosso comportamento nos revelar um referencial
mais atrelado à queda do que à salvação em Cristo? Melhor será corrigir. Que
sejamos luz e sal em um mundo gritando por soluções, mas perdido em suas
discussões e problemas.
___________
*Fonte: E esse tal feminismo?, publicado originalmente no blog
Reforma21, aqui.
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