JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: O CORAÇÃO DO EVANGELHO | Alderi Souza de Matos
Alderi
Souza de Matos*
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Cordeiro de Deus, detalhe de vitral da Grace Lutheran Church Knoxville, TN (EUA). |
Em
nossos dias, a verdade bíblica da justificação pela fé é desconhecida ou mal
compreendida por muitos evangélicos. No entanto, ela foi a questão central
levantada pela Reforma Protestante do século 16. Assim como o “sola Scriptura”
foi denominado o “princípio formal” da Reforma, porque a Bíblia é a fonte de
onde procedem todas as autênticas doutrinas cristãs, a justificação mediante a
fé é o seu “princípio material”, porque envolve a própria substância ou
essência do que se deve crer para a salvação.
João
Calvino, o pai espiritual das igrejas reformadas, referiu-se a essa doutrina
como “o principal ponto de apoio sobre o qual se articula a religião”
(Institutas 3.11.1). Ele tratou desse conceito em uma das seções mais longas da
sua obra principal (Livro III, Caps. XI-XIX), onde lhe deu a seguinte
definição: “Interpretamos a justificação simplesmente como a aceitação pela
qual Deus nos recebe em seu favor como homens justos, e dizemos que ela
consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo” (3.11.1).
Thomas
Cranmer, o arquiteto do anglicanismo, disse que a justificação pela fé era “a
forte rocha e o fundamento da religião cristã” e Martinho Lutero afirmou que
ela é “o tema principal do qual fluem todas as outras doutrinas”. Na realidade,
a experiência religiosa fundamental de Lutero e as ênfases mais importantes da
sua teologia e da sua obra como reformador pioneiro decorreram da descoberta
dessa majestosa verdade bíblica.
A
justificação é a resposta de Deus à mais importante de todas as questões
humanas: Como uma pessoa pode se tornar aceitável diante de Deus? A resposta
está clara no Novo Testamento, especialmente nos escritos de Paulo, como a
passagem clássica de Romanos 3.21-25. Biblicamente, a justificação é um
conceito jurídico ou forense, e tem o significado de “declarar justo”. É o ato
de Deus mediante o qual ele, em sua graça, declara justo o pecador, isentando-o
de qualquer condenação. Infelizmente, a palavra portuguesa “justificação”,
originária do latim, dá a ideia de “tornar justo”, no sentido de produzir
justiça no justificado. Mas o termo grego original dikaiosyne não se refere a uma mudança intrínseca no indivíduo, e
sim a uma declaração feita por Deus. Visto que não temos justiça própria e
somos culpados diante de Deus, ele nos declara justos com base na expiação de
nossos pecados por Cristo e na sua justiça imputada a nós.
Pode-se
dizer que a justificação está estreitamente relacionada com três princípios da
Reforma: “sola gratia”, “sola fides” e “solo
Christo”. Daí, James Montgomery Boyce a define como “um ato de Deus pelo
qual ele declara os pecadores justos somente pela graça, somente por meio da
fé, somente por causa de Cristo”. Assim, a fonte da justificação é a graça de
Deus, o fundamento da justificação é a obra de Cristo e o meio da justificação
é a fé. A fé é o canal através do qual a justificação é concedida ao pecador
que crê; é o meio pelo qual ele toma posse das bênçãos obtidas por Cristo (como
a paz com Deus, Rm 5.1). Ela não é uma boa obra, mas um dom de Deus, como Paulo
ensina em Efésios 2.8-9. É o único meio de receber o que Deus fez por nós (“sola fides”), ficando excluídos todos os
outros atos ou obras.
Isto
significa que a justiça do crente é somente uma justiça imputada, atribuída a
ele, sem incluir uma transformação moral e espiritual? Não, a justificação é
seguida de uma justiça real e efetiva – tão de perto que, se não seguir, a
pessoa não está justificada. Mas a justificação em si ainda não se refere a
essa mudança. Deus nunca nos torna justos antes de nos declarar justos. Estando
justificados pela graça e reconciliados com Deus mediante a fé, com base
somente nos méritos de Cristo, estamos capacitados para crescer em santificação
(Ef 2.10). Em suma, Deus não somente nos declara justos (justificação), mas
posteriormente nos torna justos (santificação).
Tristemente,
muitos evangélicos têm deixado de confessar de modo convicto essa verdade que
está no coração do evangelho. Muitos líderes e movimentos têm voltado a
insistir na prática de certas ações ou na exibição de determinadas virtudes
como condição para que as pessoas sejam aceitas, perdoadas e abençoadas por
Deus. Volta-se, assim, ao sistema de salvação pelas obras ou pelos méritos
humanos contra o qual se insurgiram os reformadores. Com isso exalta-se o ser
humano, suas escolhas, decisões e iniciativas, e se desvaloriza a Deus, sua
graça, sua soberania, sua obra de expiação por meio de Cristo. Tenhamos a
coragem e a coerência bíblica de reafirmar a verdade solene da justificação
pela fé somente, que é, no dizer dos reformadores, o articulus stantis et cadentis ecclesiae, “o artigo pelo qual a
igreja se sustenta ou cai”.
______________
Artigo publicado originalmente aqui.
Nota do blog Mathetes: Para entender distinções e semelhanças entre o conceito de justificação pela fé entre luteranos e reformados, veja artigo da "Fides Reformata": A Justificação pela Fé nas Tradições Luterana e Reformada: Um Ensaio em Teologia Comparativa, do Rev. Heber Carlos de Campos, disponível aqui.
Dr. Alderi
Souza de Matos, professor de História da Igreja no Centro Presbiteriano de
Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ), na Universidade Presbiteriana Mackenzie
(UPM) e historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).
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