NOSSAS DECISÕES E A SOBERANIA DE DEUS - O Caso da Monarquia em Israel (1 Samuel 8)



Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. (1 Samuel 8.19)

Estamos no início de outubro, e em grande parte do país as eleições municipais já estão encerradas[1]. Nas redes sociais, a celeuma em torno de candidatos ainda é grande, evidenciando a 'profundidade' das “relações virtuais”: “sou seu amigo até concordarmos no ponto de vista e viés político-ideológico, uma vez discordantes, au revoir”! O anseio por representantes que governem com integridade e competência costuma gerar acalorados debates e despertar as mais profundas paixões. Não foi diferente com relação a Israel. Guardadas as devidas proporções, os eventos narrados nos livros de 1 e 2 Samuel – normalmente compreende o período de 930-538 a.C.[2] – nos mostram um cenário de crise. A apatia espiritual e a degeneração moral, bem característicos do período dos Juízes[3], imperava e são expostos desde os primeiros capítulos de 1 Samuel, na figura dos filhos do sacerdote Eli (cf. 2.12−7.17).

Uma constatação

Em 1 Samuel, o estilo de narração dramático, à primeira vista pode ser visto como uma sucessão de registros militares de Israel. Porém, o narrador faz uso de uma variedade de técnicas sofisticadas para expressar suas avaliações teológicas, como: caracterizações comparativas ou contrastantes (p. ex., Saul e Jônatas, nos caps. 13−14; Davi e Urias, em 2 Samuel 11, etc.), repetição com variação (p. ex., as duas confissões de Saul, em 15.24-25,30) e analogia narrativa (p. ex., Nabal como substituto de Saul, no cap. 25). A sensibilidade a essas características literárias levará o leitor a uma crescente compreensão teológica. Ao longo de 1 Samuel, fica claro como a nação de Israel há muito caminhava distante de Deus. É emblemática a terrível informação que 2.12 nos dá: Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial e não se importavam com o SENHOR. (grifo meu). Muito embora, seja um claro paralelo entre o verso anterior, em que Samuel é apresentado como sendo o oposto, a constatação a que chegamos é que a situação espiritual em Israel beirava o insustentável – tudo isso, claro, sob a soberania de Deus e de Sua misericórdia – havia uma enorme e urgente necessidade de reforma! Essa era a constatação a que se deveria chegar.

Uma decisão

Decisões são sempre importantes. Não há como passar incólumes por elas, é preciso se posicionar e até o não tomar decisão, já é por si próprio uma deliberação. Em face dos problemas enfrentados no período dos Juízes, precisamos entender algumas verdades fundamentais:

  • Deus queria que o seu povo tivesse um rei escolhido por ele;
  • Deus cuidadosamente preparou o caminho para o rei de sua escolha;
  • Deus escolheu a casa de Davi para ser a família real eterna;
  • Apesar da fraqueza do reino de Davi, a esperança para o povo de Deus ainda permanecia na sua família.

A despeito desse grande contexto, os capítulos 8−12 expõem a pecaminosidade da exigência de um governante humano por parte do povo. Não porque Israel jamais devesse ter um monarca humano, pois a monarquia já fora prevista havia muito tempo (cf. Gênesis 17.6; 49.10). Antes, o que era censurável é que o povo quisesse um rei “como o têm todas as nações” (1 Samuel 8.5), pois isso tinha a conotação de rejeição ao grande Rei, o próprio Deus (1 Samuel 8.7). Emblemática é a resposta do povo no verso que utilizo no cabeçalho desse texto:

Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. (1 Samuel 8.19, ARA, grifo meu)
וַיְמָאֲנוּ הָעָם לִשְׁמֹעַ בְּקֹול שְׁמוּאֵל וַיֹּאמְרוּ לֹּא כִּי אִם־מֶלֶךְ יִֽהְיֶה עָלֵֽינוּ׃

No hebraico, o modo imperativo não é utilizado para proibições. Ao invés disso, negativas e proibições são expressas por לֹּא com uma forma do imperfeito ou por אַל com uma forma do jussivo, que por sua vez expressa uma forma mais amena de proibição, mais próxima de um desejo ou uma tentativa de dissuasão. Um לֹּא com um imperfeito expressa uma proibição categórica ou absoluta. É usado, por exemplo, nas proibições dos Dez Mandamentos. Você pode não ter entendido nada sobre esses detalhes gramaticais, mas o que se apreende a partir deles é a veemência empregada nesse texto é a mesma utilizada, p. ex., quando Êxodo 20.3 sentencia: Não terás outros deuses diante de mim (grifo meu). Em suma, o povo estava obstinado em sua decisão e não havia quem o demovesse, nem mesmo o próprio Deus, por boca de Samuel.

As consequências

Apesar da ofensa e insensatez do pedido (com conotação de ordem, como vimos acima) do povo, Deus estava disposto a atende-lo. Antes, porém, o SENHOR faz advertências a respeito dos abusos potenciais do reino solicitado pelo povo (versos 9−18). Deus afirma, através de Samuel, que o futuro rei não deveria buscar autonomia, antes deveria se submeter à estrutura de autoridade por meio do qual o governo de Deus continuaria. Foi justamente nesse último quesito que o primeiro rei apontado por Israel se mostrou falho. Saul é apresentado em 9.2 como uma pessoa admirável e de físico impressionante, presumivelmente o que o povo tinha em mente. Qualquer semelhança com o modo como, em geral, escolhemos nossos governantes, não é mera coincidência. A constante falta de temor a Deus nos leva a uma superficialidade que vai além da tolice e ignorância. Mais que isso, longe de Deus, nossos corações clamam por futilidades e desejos egoístas (cf. Tiago 4.1-3). Todo sofrimento advindo de uma escolha precipitada e insensata, fez Israel amargar significativa piora no quadro de profunda decadência espiritual, desembocando por fim, no juízo executado no exílio/cativeiro da Babilônia, concluído em sua segunda leva, em 587 a.C., sob o rei Zedequias (cf. Jeremias 52).

Tudo se encerraria em tragédia se os planos de Deus para a instauração de uma monarquia em Israel fossem desprovidos de propósitos ou, como querem, os teístas abertos, circunstancial e não-autônoma. Centenas e centenas de anos antes desses eventos, quando Jacó abençoou os seus filhos, explicou que a tribo de Judá havia sido estabelecida para ser a família real de Israel: O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés, até que venha Siló; e a ele obedecerão os povos. (Gênesis 49.10). A Lei de Moisés antevia um rei (Deuteronômio 17.14-20), apresentando prescrições para a monarquia humana em Israel, e não a proibindo. Soberanamente, Deus já havia preparado tudo e proveria a Israel o Rei e o seu governo não terá fim (Salmos 145.13, Isaías 9). Cristo Jesus é o cumprimento final, para onde converge as promessas e profecias. Lucas, em seu evangelho, divinamente inspirado, identifica em Jesus, a concretização do propósito divino quanto à monarquia. O anjo (mensageiro) anuncia: Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim. (Lucas 1.32,33). Na cruz do Calvário, Cristo, o Rei dos reis, usando uma dolorosa e humilhante coroa de espinhos cumpriu a vontade do Pai sendo obediente até o fim. 

Breves aplicações

Algumas aplicações e considerações precisam ser feitas diante disso tudo. Eis algumas delas:

  1. Quanto mais distantes de Deus, mais distantes d’Ele serão nossas decisões;
  2. Quanto mais pensemos o contrário, Deus jamais perdeu nem perderá o controle e o governo do universo;
  3. Nossa esperança não pode repousar em governos humanos por melhores que aparentemente sejam.
  4. Cristo é o Rei da glória, cuja vontade jamais será frustrada e o governo jamais será abalado.



[1] Eleitores de 55 cidades voltarão às urnas no dia 30 de outubro para escolher seus prefeitos. O segundo turno pode ser realizado apenas nos municípios com mais de 200 mil eleitores, quando nenhum candidato obtém a maioria dos votos válidos (50% mais 1 voto) no primeiro turno. Haverá segunda eleição em 18 capitais e em outros 37 municípios de 11 estados. Dados: TSE: aqui.
[2] Bíblia de Genebra, 2ed., pág. 348.
[3] Para uma cronologia do período dos Juízes, veja o artigo A Cronologia do Período dos Juízes, de Thomas Tronco.

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