POR QUE NÃO HÁ MAIS APÓSTOLOS HOJE?
Augustus
Nicodemus*
Em sua polêmica contra
os escribas e fariseus, Jesus de certa feita se referiu a seus apóstolos como
aqueles que, à semelhança dos profetas, sábios e escribas enviados por Deus ao
antigo Israel, seriam igualmente enviados, rejeitados, perseguidos e mortos (cf. Lc 11.49 com Mt 23.34). Desta forma, ele estabelece o paralelo entre os
apóstolos e os profetas como enviados de Deus ao seu povo. Tem sido observado
que os sucessores dos profetas do Antigo Testamento, como Isaías, Jeremias,
Ezequiel, Daniel e Amós, por exemplo, não foram os profetas do Novo Testamento,
que tinham ministério nas igrejas locais, mas os apóstolos de Jesus Cristo,
mais especificamente os doze e Paulo.[1]
Conforme já vimos acima,
os profetas foram diretamente vocacionados e chamados por Deus (cf. Is 6.1-9; Jr 1.4-10; Ez 2.1-7; Am 7.14-15). A palavra mais usada para
“profeta” no Antigo Testamento (nabi), transmite o conceito de alguém que fala por outro, como “sua boca” (Ex 4.16; 7.1; cf. ainda Dt 18.14-22).
O profeta era, então, primariamente, alguém que falava da parte de Deus,
inspirado e orientado por ele. Os profetas falaram ousadamente da parte dele
sua mensagem ao povo de Israel (Lc 1.70;
Hb 1.1-2). Parte destas profecias
veio a ser escrita e registrada no Antigo Testamento, que é chamado por Paulo
de “escrituras proféticas” (Rm 16.26,
cf. ainda 2Pe 1.21; 2Tm 3.16).[2] Notemos que a mensagem dos profetas não consistia apenas da
predição de eventos futuros relacionados com a ação de Deus na história, os
quais se cumpriram infalivelmente (Dt
18.20-22; cf. 1Rs 13.3,5; 2Rs 23.15-16). A mensagem deles
consistia, em grande parte, na exposição desses eventos e sua aplicação aos
seus dias. Os profetas introduziam suas palavras com as fórmulas “assim diz o
Senhor” e “veio a mim a Palavra do Senhor dizendo, ” o que identificava sua
mensagem como inspirada e infalível. Como tal, deveria ser recebida pelo povo
de Deus como a própria palavra do Senhor.
A literatura
intertestamentária produzida pelos judeus nos séculos depois de Malaquias
considerava que o ministério desses profetas encerrou-se com Malaquias.[3] Da mesma forma, os escritores do Novo
Testamento se referem aos profetas antigos como um grupo fechado e definido
(cf. Mt 23.29-31; Mc 8.28; etc.). A pergunta é: através
de quem Deus continuou a se revelar? Quem foram os sucessores dos profetas do
Antigo Testamento como receptores e transmissores da Palavra de Deus? Resta
pouca dúvida de que foram os doze apóstolos e o apóstolo Paulo, e não os
profetas cristãos das igrejas locais, como aqueles que haviam em Jerusalém,
Antioquia e Corinto, por exemplo (At
11.27; 13.1; 1Co 14.29). Ao contrário do que ocorria
no Antigo Testamento, profetizar, na igreja cristã nascente, era um dom que
todos os cristãos poderiam exercer no culto, desde que seguindo uma determinada
ordem (1Co 12.10; 14.29-32). E, diferentemente dos
grandes profetas de Israel, as palavras dos profetas cristãos tinham de ser
julgadas pelos demais (1Co 14.29) e
eles estavam debaixo da autoridade apostólica (1Co 14.37).
Em contraste com os
profetas cristãos, os apóstolos do Novo
Testamento, isto é, os doze e Paulo, receberam uma chamada específica de Jesus
Cristo, receberam revelações diretas da parte de Deus, como os antigos profetas
(At 5.19-20; 10.9-16; 23.11; 27.23; 2Co 12.1), e assim predisseram futuros eventos relacionados com a
história da salvação, entre os quais a segunda vinda do Senhor, a ressurreição
dos mortos e o juízo final – isso não quer dizer que sua chamada se deu porque
tinham o “dom” de apóstolo. (1Co
15.51-52; 2Ts 2.1-12; 2Pe 3.10-13).[4] Lembremos que o livro de Apocalipse é uma profecia (ver Ap 1.3; 22.18-19) escrita por um apóstolo.[5] Ao contrário dos profetas cristãos das igrejas locais, que não
deixaram nada escrito, os apóstolos foram inspirados para escrever o Novo
Testamento (1Ts 2.13; 2Pe 3.16) e a palavra deles deveria ser
recebida, à semelhança dos profetas antigos, como Palavra de Deus, sem
questionamentos, ao contrário dos profetas das igrejas locais (Gl 1.8-9; 1Co 14.37). Os autores neotestamentários que não foram apóstolos,
como Marcos, Lucas, Tiago e Judas eram, todavia, parte do círculo apostólico e
associados aos apóstolos, escrevendo a partir do testemunho deles.[6]
Como sucessores dos
profetas de Israel e canais da revelação, os apóstolos aparecem juntos com eles
na base da igreja. Nas palavras de Jesus, “Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos,
e a alguns deles matarão e a outros perseguirão” (Lc 11.49). Paulo junta os dois grupos duas vezes na carta aos
Efésios como aqueles designados por Deus para lançar as bases da igreja;
“edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas” (Ef 2.20); “o qual, em outras gerações, não foi dado a conhecer aos
filhos dos homens, como, agora, foi revelado aos seus santos apóstolos e
profetas, no Espírito” (Ef 3.5).
Muitos estudiosos entendem que os “profetas” mencionados nestas duas passagens
de Efésios são profetas das igrejas neotestamentárias, que vieram depois dos
apóstolos. Todavia, mesmo estando numa sequência temporal invertida, “profetas”
se entende melhor como os grandes profetas de Israel, que vieram antes dos
apóstolos. A sequência “apóstolos e profetas” não precisa ser entendida como
uma sequência temporal. Os apóstolos são mencionados primeiro por estarem no
foco do contexto.[7]
Em sua segunda carta,
Pedro admoesta seus leitores a se recordarem tanto das palavras que foram ditas
pelos “santos profetas” como do mandamento ensinado por “vossos apóstolos” (2Pe 3.2). Alguns entendem que “vossos
apóstolos” aqui é uma referência aos missionários pioneiros que haviam fundado
as igrejas às quais Pedro escreve. Contudo, a carta de Pedro não foi destinada
a igrejas locais específicas e sim aos cristãos em geral (cf. 2Pe 1.1). O único grupo de “apóstolos”
que se encaixaria como “vossos apóstolos” seriam os doze, que eram apóstolos
para todas as igrejas.[8] A carta de
Judas, cuja similaridade com a segunda carta de Pedro tem levado estudiosos a
acreditarem numa dependência literária entre elas,[9] ao se referir aos apóstolos
neste mesmo contexto, designa-os como “os apóstolos de nosso Senhor Jesus
Cristo,” numa clara referência ao grupo dos doze (Jd 17).10 Estas
passagens refletem a consciência de que os apóstolos de Jesus Cristo foram os
continuadores dos profetas do Antigo Testamento como canais pelos quais Deus
revelou sua vontade.[11]
Uma vez que a revelação
de Deus quanto ao plano da salvação foi totalmente escrita e registrada de
maneira final, completa e infalível pelos apóstolos, no Novo Testamento,
completando assim a revelação dada através dos profetas de Israel no Antigo
Testamento, encerrou-se o ministério de ambos os grupos. Já que os apóstolos
foram os sucessores dos profetas do Antigo Testamento, não há, pois, hoje,
possibilidade de haver apóstolos como os doze e Paulo, pois eles foram
recipientes e transmissores da revelação final de Deus para seu povo, que se
encontra registrada no Novo Testamento.
*Fonte: NICODEMUS, Augustus. Apóstolos: Verdade Bíblica sobre o Apostolado, São José dos Campos-SP: Editora Fiel, 2014, pp. 31-35.
**Postagem atualizada: 10/11/2016 - 13h51.
**Postagem atualizada: 10/11/2016 - 13h51.
__________
NOTAS:
NOTAS:
1
- Cf. Heber Carlos de Campos, “Profecia Ontem e Hoje” em
Misticismo e Fé Cristã (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013), pp. 63-126;
Christiaan J. Beker, Paul the Apostle - The Triumph of God in Life and Thought
(Philadelphia: Fortress Press, 1980), p. 113.
2
- Alguns estudiosos, como E. E. Ellis, sugerem que “escrituras proféticas” é
uma alusão de Paulo a escrituras que haviam sido produzidas por profetas
neotestamentários, escritos estes que haviam circulado pelas igrejas, mas nunca
foram preservados (E. Earle Ellis, The Old Testament in Early Christianity em
WUNT, 54 [Tübingen: Mohr/Siebeck, 1991], 4-5; E. Earle Ellis, Pauline Theology:
Ministry and Society [Grand Rapids: Eerdmans; Exeter: Paternoster Press, 1989],
138 n. 79). Todavia, Cranfield corretamente considera esta interpretação de
Ellis como “desesperada” (C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical
Commentary on the Epistle to the Romans, 2 vols, em International Critical
Commentary [Edinburgh: T. & T. Clark, 1979], 2:811, n.8).
3
- “Desde que os últimos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias morreram, o
Espirito Santo cessou em Israel” (T. Sota, 13, 2). Cf. πνε?μα no TDNT.
4
- O livro de Atos registra duas ocasiões em que Ágabo, um
profeta de Jerusalém, anunciou acontecimentos futuros, relacionados com uma
fome que veio a acontecer nos dias do imperador Cláudio (At 11.27-30) e com a
prisão de Paulo em Jerusalém (At 21.10-11). O fato de que somente estes dois
casos de profecias preditivas (e feitas por um único profeta) estão registrados
pode indicar que a previsão do futuro não era comum fora do círculo apostólico,
especialmente ainda se considerarmos que ambas as profecias de Ágabo estavam
relacionadas com o ministério de Paulo. White tenta colocar estas profecias de
Ágabo no mesmo nível daquelas revelações fundacionais que foram dadas aos
apóstolos (Ef 3.5; cf. R. Fowler White, "Gaffin and Grudem on Eph 2:20: In
Defense of Gaffin's Cessationist Exegesis,"
em Westminster Theological Seminary, 54 [1992], 309-310), mas é evidente que
elas estavam relacionadas com a vida pessoal do apóstolo Paulo, tanto sua em
ida a Jerusalém levando ajuda para os crentes da Judeia, como em sua posterior
prisão naquela cidade.
5
- Assumimos aqui que foi o apóstolo João quem escreveu o livro de Apocalipse.
6
- Marcos escreveu a partir do testemunho de Pedro. Lucas foi companheiro de
Paulo. Tiago era o irmão de Jesus, líder da igreja de Jerusalém e próximo do
círculo (Gl 1.19). Judas era outro irmão de Jesus e também relacionado com o
círculo apostólico. Lembremos por fim que Hebreus entrou no cânon porque sua
autoria era atribuída ao apóstolo Paulo, como até hoje é defendido por vários
estudiosos.
7
- Que Ef 3.5 se refere aos profetas do Antigo Testamento é também defendido por
F. Mussner, Christus, das All und die Kirche: Studien zur Theologie der
Epheserbriefes (Trierer: Paulinus, 1955), 108. Deve-se admitir, contudo, que
grande parte dos comentaristas pensa que Paulo está se referindo aos profetas
neotestamentários, como Andrew T. Lincoln, por exemplo. (Ephesians em Word
Biblical Commentary, vol. 42, eds. D. Hubbard, et al. [Dallas, TX: Word Books,
1990], 153. Tanto Gaffin (Richard B. Gaffin, Jr. Perspectives on Pentecost: New
Testament Teaching on the Gifts of the Holy Spirit [Grand Rapids: Baker, 1979],
93) quanto Grudem (Wayne Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians
[Washington: University Press of America, 1982], 47) entendem que “profetas” em
Efésios 2.20 se refere aos do Novo Testamento, mas eles fazem esta defesa no
contexto do debate cessacionismo-continuismo. Um dos principais argumentos
contra o entendimento de que Paulo aqui se refere aos profetas do Antigo
Testamento é a ordem “apóstolos e profetas,” o que tornaria isto
cronologicamente impossível. Entretanto, a menção que Paulo faz dos profetas do
Antigo Testamento, depois de Jesus em 1Ts 2.15, “os quais não somente mataram o
Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram” certamente inverte a
sequência histórica dos eventos e mostra que Paulo nem sempre está preocupado
com a cronologia, como estudiosos modernos estão. Cf. F. F Bruce, 1 & 2
Thessalonians, WBC, vol. 45, eds. D. Hubbard, et al. (Dallas, TX: Word Books,
1982), 47; Robert Jamieson, A. R. Fausset, e David Brown, Commentary Critical
and Explanatory on the Whole Bible (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems,
Inc., 1997).
8
- Cf. A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament (Nashville, TN:
Broadman Press, 1933) in loco; D. A. Carson, R. T. France, J. A. Motyer, e G.
J. Wenham, orgs. New Bible commentary: 21st century edition. 4th ed.
(Leicester, England; Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1994) in loco.
9
- Veja Augustus Lopes, II e III de João e Judas (São Paulo, SP: Editora Cultura
Cristã, 2009).
10
- Cf. Jamieson, Commentary, in loco.
11
- É preciso observar que a declaração de Jesus de que “todos os Profetas e a
Lei profetizaram até João” (Mt 11.13) significa o encerramento do ministério
dos profetas do Antigo Testamento, mas não o término da revelação que começou a
ser dada através deles. Os apóstolos do Novo Testamento – e não os profetas do
Novo Testamento – foram os canais pelos quais esta revelação continuou a ser
dada. É neste sentido que os consideramos como sucessores dos profetas de
Israel.
Muito esclarecedor, obrigada por compartilhar!
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