DAVI DANÇOU, EU TAMBÉM QUERO DANÇAR! | Augustus Nicodemus
Este é um dos argumentos que mais escuto da
parte daqueles que defendem a "dança litúrgica" durante os cultos
públicos nas igrejas evangélicas. Se o rei Davi dançou diante da arca de Deus,
quando a mesma estava sendo trazida de volta para Jerusalém, por que nós não
podemos, da mesma forma, expressar nossa alegria diante de Deus em nossos
cultos, com danças de caráter religioso? Afinal, a Bíblia menciona não só Davi,
mas Miriã e outras pessoas que dançaram de alegria na presença do Senhor (a
imagem ao lado de Davi dançando é do famoso pintor francês James Tissot).
Não consigo me convencer com este
argumento. Eu sei que existem outros, mas este, em particular, não me convence.
Não é que eu seja contra a dança em si. Sinceramente, não vejo como considerar
a dança como um ato pecaminoso, como parece que alguns segmentos evangélicos
fazem. Se Davi dançou, e com ele outros personagens da Bíblia, isto pode não
provar que devemos dançar em nossos cultos, mas no mínimo é uma evidência de
que a dança em si não é pecaminosa, errada ou imprópria para o cristão. A não ser,
é claro, aquelas danças sensuais, provocativas, eróticas ou, no mínimo,
sugestivas, que despertem paixões e a lascívia. Nesse caso, me junto aos Pais
da Igreja, como Basílio, João Crisóstomo, Agostinho, Tertuliano, entre outros,
que condenaram veementemente este tipo de dança por parte dos cristãos.
Mas, nem toda dança é sensual. Quando eu
estava estudando para meu doutorado nos Estados Unidos frequentava com minha
família uma igreja presbiteriana muito firme biblicamente. Uma vez por mês os
casais da igreja se encontravam no salão social num sábado à noite onde,
liderados pelo pastor e sua esposa, ouviam música country, jazz, clássica, e
eventualmente dançavam (cada um com seu cônjuge, veja bem!). Minha esposa Minka
e eu estivemos lá umas poucas vezes. Nós mesmos não chegamos a dançar, sou meio
duro nas articulações e daria um espetáculo horroroso, matando a Minka de
vergonha... hehehehe. Mas foi uma experiência muito interessante, que me marcou
pela alegria, naturalidade e pureza do evento. E serviu para demonstrar o que
eu já pensava, que dançar em si não é pecado.
Voltemos a Davi. Por que então não consigo aceitar que o exemplo dele é definitivo como
base para as danças litúrgicas, ministérios de coreografia, dança profética e
grupos de danças durante os cultos?
Bem, primeiro porque não acredito que
devamos fazer normas ou estabelecer princípios gerais para a vida da igreja
simplesmente a partir de atos, ações, eventos, incidentes envolvendo os heróis
da Bíblia. Nem tudo o que aconteceu na vida deles pode virar paradigma para os
cristãos. A não ser aquelas coisas que a própria Bíblia determina. Jesus, por
exemplo, recomendou que imitássemos Davi em sua atitude para com a lei
cerimonial (Mat 12:3). Davi é citado
como homem segundo o coração de Deus (Atos
13:22), que serviu a Deus em sua própria geração (Atos 13:36), no que deveria ser imitado. Sua fé o coloca na galeria
dos heróis da fé em Hebreus (11:32) e serve de exemplo para nós. Ainda
poderíamos mencionar seu arrependimento e contrição após ter pecado contra Deus
(Salmos 32 e 51). Tais coisas são norma e regra geral para todos os cristãos.
Isto não significa, todavia, que cada atitude de Davi sirva de modelo para nós.
Uma segunda dificuldade que tenho é com
este tipo de interpretação, muito popular hoje entre os evangélicos, que
simplesmente transpõe para nossos dias os eventos históricos narrados na
Bíblia, sem levar em consideração o contexto cultural, histórico, teológico e
literário dos mesmos, e os usa como base para construir ritos, práticas e
regras a serem seguidos nas igrejas cristãs. Moisés bateu com a vara na rocha -
lá vem a reencenação do episódio nas igrejas como símbolo da vitória. Ouvi
falar que a derrubada da muralha de Jericó foi recentemente reencenada numa
igreja (usando uma muralha de isopor e gelo seco) como base para se clamar a
vitória para o ano de 2009. E por aí vai. A lista é enorme. No caso de Davi,
não poderíamos esquecer que na cultura do Antigo Oriente as danças eram usadas
como manifestação popular pelas vitórias militares obtidas, e eram geralmente
lideradas pelas mulheres. Foi o caso com a dança de Miriã (Ex 15:20), a filha de Jefté (Juízes
11:34), as mulheres de Judá (1Sam
18:6) e a própria dança de Davi (2Sam
6:20). Ao que parece, o povo saia em passeata dançando em roda (sobre dança
de roda, veja Juízes 21:21 e 23). Até onde sei, no Brasil não se
costuma celebrar as vitórias com danças de roda. As danças têm outra conotação
e servem a outros propósitos, nem sempre moralmente neutros.
Tudo bem, vá lá. Vamos supor, por um
momento, que a dança de Davi sirva de base para nós, cristãos. O que o evento
lúdico do rei de Israel poderia nos autorizar? Com certeza, não autoriza que
dancemos nos cultos públicos de nossas igrejas, pois a dança de Davi foi numa
passeata religiosa, nas ruas de Jerusalém, algo espontâneo e do momento. Ele
não marcou um culto no templo de Jerusalém, que era o local determinado por
Deus para os cultos a Ele, onde foi dançar de alegria perante o Senhor. Até
onde eu sei, nos cultos determinados por Deus no Antigo Testamento não havia
dança alguma. Deus não determinou a dança como elemento de culto, não há
qualquer registro de que as mesmas fizessem parte do culto que lhe era
oferecido no templo. E acho que os apóstolos e primeiros cristãos entenderam desta
forma, pois não há danças nos cultos do Novo Testamento.
Se formos usar o exemplo de Davi como base,
chegaremos à conclusão que a dança dele também não autoriza a criação de grupos
de dança litúrgica nas igrejas, que se apresentam regularmente nos cultos. Não
justifica nem a criação dos ministérios de dança e a descoberta do dom
espiritual da dança litúrgica e profética. A dança de Davi foi um evento
isolado e individual. Não foi feita por um grupo que treinava e ensaiava para
se apresentar regularmente nos cultos do templo. Aliás, não encontro no Antigo
Testamento qualquer indicação de que havia em Jerusalém um grupo de levitas que
se dedicavam ao ministério da dança litúrgica e que se apresentavam
regularmente durante os cultos no templo de Deus. E deve ser por isto que
também não encontramos estes grupos no Novo Testamento. Acho que o rei de
Israel cairia de costas se ele visse tudo o que se inventou hoje no culto a
Deus com base naquele dia em que ele saltou de alegria diante da arca do
Senhor.
Por último, acho que este tipo de
argumento, "Davi dançou, eu também quero dançar", deixa de lado
alguns princípios importantes sobre o culto que devemos prestar a Deus.
Primeiro, que embora toda nossa vida seja um culto a Deus (veja 1Cor 10:31), Ele mesmo determinou que
seu povo se reunisse regularmente para cultuá-lo, cantar louvores a seu Nome,
buscá-lo publicamente em oração e ouvir Sua Palavra. Uma coisa não exclui a
outra, mas não devem ser confundidas. Nem tudo que cabe na minha vida diária
como culto a Deus caberia no culto público e solene. Por exemplo, posso plantar
bananeira para a glória de Deus, mas não vejo como justificar isto no culto
público regular das igrejas. Cabia perfeitamente a Davi dançar de alegria
naquele dia, na procissão de vitória, nas ruas de Jerusalém. Todavia, não o
vemos fazendo isto no templo de Jerusalém, durante os cultos estabelecidos por
Deus.
Segundo, não podemos inventar maneiras de
cultuar a Deus além daquelas que Ele nos revelou em Sua Palavra. Os elementos
que compõem o culto a Deus, até onde eu entendo a Bíblia, são a oração, o
cantar louvores, a ação de graças, a leitura e pregação da Palavra, as
contribuições voluntárias de seu povo, o batismo e a Ceia (quando houver). É
claro que a Bíblia não estabelece ritmos musicais, não nos dá orações fixas e
nem mesmo uma ordem litúrgica a ser seguida. Mas, ela nos dá os princípios e os
elementos do culto que Deus aceita. A questão, portanto, não é se Davi e outros
heróis da fé dançaram, mas sim se as danças litúrgicas fazem parte daquele
culto que Deus determinou em Sua Palavra. E mesmo que eu não tenha nada contra
o dançar em si, não vejo como as danças possam ser enquadradas como elementos
de culto.
Enfim. Ao ler a história da dança de Davi o
que aprendo é o amor que ele tinha ao Senhor, e a alegria que o dominava pelas
coisas de Deus. Aprendo que devo amar ao Senhor e me alegrar com as coisas dele
à semelhança de Davi. Todavia, não creio que a maneira com que Davi expressou
estes sentimentos seja elemento de culto para os cristãos. O texto está muito
longe de requerer isto. Sei que vou escandalizar muita gente ao dizer que eu
não veria problemas com grupos de coreografia para evangelizar ou mesmo para
participar em reuniões sociais dos jovens e adolescentes de nossas igrejas (sobre
boate evangélica, falaremos em outra oportunidade). Mas o culto público a Deus,
quer nos templos, quer em qualquer outro lugar, é regido pela regra: "só
devemos adorar publicamente a Deus com aqueles elementos de culto que
encontramos na Bíblia".
Termino lembrando que neste post estou
interessado apenas no uso do episódio da dança de Davi como base para as danças
litúrgicas. Há vários outros argumentos usados para defender esta prática, cada
vez mais comuns nas igrejas evangélicas (como por exemplo o Salmo 150), que não
receberam atenção aqui, mas que podem ser alvo de uma futura postagem sobre o
assunto.
__________
Fonte:
O Tempora, o Mores!
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