NEM SÓ DE PÃO VIVERÁ O HOMEM



Em 1987, o Brasil fervia. O Sport Recife era campeão brasileiro de futebol – título reconhecido pelo STJD, com trânsito em julgado – o então presidente, Sarney – vice do finado Tancredo Neves – lançava o malfadado Plano Bresser, sucessor do Plano Cruzado. A inflação, contida por um período muito curto, só faria crescer dali em diante. Nova tentativa de estabilização seria feita em janeiro de 1989 (Plano Verão) pelo sucessor de Bresser, Maílson da Nóbrega. Mas seria ainda mais efêmera. O país caminhava para a hiperinflação. O neopentecostalismo nascia e já endurecia o pescocinho, ganhando adeptos no maior país Católico do mundo. Os Titãs, a essa época já um sucesso retumbante, lançavam seu quarto álbum de estúdio, chamado Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas. O nome estranho e irreverente – em toda a acepção do termo – quase não é lembrado, mas a faixa 2, “Comida”, não. “Melô de protesto” pra Edson Gomes nenhum botar defeito, a segunda estrofe vaticinava:
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte

Trinta anos depois, o cenário não mudou muito. A diferença é que hoje, com a internet, ficamos sabendo dos escândalos de corrupção praticamente em tempo real, executamos as músicas das bandas do momento no Spotify e, cada vez mais, vemos o Reino de Deus reduzido à 'comida' com a profusão de seitas evangélicas e sua Teologia da Prosperidade. O trocadilho não é novo, embora dito e ensinado em direção absolutamente oposta, Deuteronômio 8.3, citado por Cristo na tentação (Mateus 4.4; Lucas 4.4), lançava luz sobre a tendência que temos de reduzir a vida ao atendimento de nossas necessidades, básicas ou não. No país da Lei de Gerson, a fé é apenas mais uma faceta a ser mercadejada com promessas mais semelhantes à sedução do Tentador no deserto, “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mateus 4.8), que tomar a cruz e seguir a Cristo. Onde falta assistência de saúde, a demanda e a procura por “ministérios de curas” cresce vertiginosamente. Onde há carestia de doutrina, cresce a necessidade de frenesi e autossatisfação travestida de culto a Deus.

A essência do reinado de Deus, a evidência desse bendito reinado em seu meio, diz Paulo em Romanos 14.17, por assim dizer, não é afetada pelo tipo de alimento que uma pessoa consome, seja cerimonialmente limpo ou impuro[i], seja apenas vegetais ou também carnes, mas é atestada por possuir alguém o estado de justiça diante de Deus, a consciência da paz com Deus, paz essa resultante da reconciliação com Deus (5.1, 10). Ela é caracterizada pela experiência da alegria operada pelo Espírito, alegria essa inexprimível e cheia de glória (1Pedro 1.8). Salta imediatamente à vista que esta resposta está em plena concordância com as palavras de Jesus: “O reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: Aqui está ele, ou: Lá está ele; porque o reino de Deus está dentro de vocês” (Lucas 17.21,22). Voltando ao texto que dá título a essa postagem (Mateus 4.4), Jesus prossegue tratando acerca do reino no que ficou conhecido como Sermão do Monte ou da Montanha. O capítulo 5 revela o cidadão do reino, seu caráter (vv. 1-12) e sua relação com o mundo (vv. 13-16). Ele é bem-aventurado, feliz, mas não conforme esse mundo. O Senhor apresenta a justiça do reino, o alto padrão exigido pelo Rei (5.17-7.12).  A vida no reino não é uma mera sucessão de “vitórias pessoais” ou necessidades e metas atingidas sob o selo gospel de aprovação. A não ser que reino seja entendido – e consequentemente, vivido – como Paul Tripp chama, de reino do eu[ii]. Não, definitivamente o reino de Deus não é o 'reino do eu'. Quando o evangelho não é anunciado em seus termos, ele transforma-se em uma plataforma aceitável para o sucesso e as realizações. O problema, como é de se esperar, é que, reduzido a isso, o que acontecerá quando as frustrações, dores e perseguições advindas da vida no reino e o posicionamento dos que pertencem ao reino sobrevierem (5.13-16)? Ou, o que é pior, talvez as dores e sofrimentos pelo evangelho nunca sejam sorvidos, posto que muitos ainda, ou mesmo nunca, fizeram/farão parte desse grandioso e verdadeiro governo. Falta-nos, urgentemente, aprender a sofrer.


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[i] No contexto imediato dessa passagem, o apóstolo passa a tratar de aspectos do dia a dia dos cristãos novos convertidos (chamados fracos, mas não em sentido pejorativo). Tanto aqui em Romanos quanto em 1 Coríntios 8.1-13; 10,14-33, Paulo ensina que a igreja - e naturalmente também os crentes individualmente - devem tratar com consideração e mansidão os que são fracos, ou seja, que são, ou pareçam ser, incapazes de apreender a significação da morte de Cristo na cruz para a vida diária. Os fortes e os fracos devem tratar-se mutuamente com benevolência.
[ii] Cf. Tripp, Paul. Em Busca de Algo Maior: Viver por alguma coisa maior que você. Cultura Cristã: São Paulo, 2007, p. 49 ss.

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