GUARDARÁS A MINHA ALIANÇA, TU E A TUA DESCENDÊNCIA: O Batismo Cristão na Perspectiva Bíblico-Reformada (Parte III)
A Circuncisão, óleo sobre madeira de álamo, 1519. Autor: Benvenuto Tisi (1481-1559) | Museu do Louvre, disponível aqui. |
Recomendo
ler antes as partes I e II dessa postagem, assim você não cairá de paraquedas
aqui. Sem mais delongas:
CONTINUAÇÃO DA CIRCUNCISÃO
Se o batismo não é atestado de
salvação, um meio de salvação, nem é essencial à mesma [veja
parte II], o que é ele, afinal de contas? Quer que eu seja direto? É a
continuação da circuncisão. É o correspondente neotestamentário do sacramento
vétero-testamentário da circuncisão. Muita atenção aqui. Os dois sacramentos do
Antigo Testamento, a páscoa e a circuncisão, não foram abolidos, e sim substituídos.
Veja o que a Confissão de Fé de Westminster afirma acerca dos sacramentos:
Os sacramentos são santos sinais e selos do pacto da graça, imediatamente instituídos por Deus para representar Cristo e os seus benefícios e confirmar o nosso interesse nele, bem como para fazer uma diferença visível entre os que pertencem à Igreja e o resto do mundo, e solenemente obrigá-los ao serviço de Deus em Cristo, segundo a sua palavra[1].
A páscoa,
o sacramento comemorativo da igreja visível, foi transformada por Jesus na
santa ceia, a ceia da nova aliança, quando ele participou da páscoa pela última
vez (Mateus 26.26-30). A circuncisão, o sacramento de admissão na igreja
visível, foi transformada no batismo cristão, visto que não mais haveria
necessidade de derramamento de sangue, uma vez que Cristo, o Cordeiro pascal
estava prestes a ser imolado. Colossenses 2.11-12 “relaciona claramente a
circuncisão com o batismo, e ensina que a circuncisão de Cristo, isto é, a do
coração, representada pela circuncisão da carne, é cumprida pelo batismo, ou
seja, pelo que este significa”[2]. Nessa
importante passagem bíblica, “enfatizando a continuidade da aliança, assim como
a natureza da mudança do sinal que a acompanha, o batismo cristão é chamado
explicitamente de “circuncisão de Cristo”, i.e., a circuncisão cristã[3]:
Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo, tendo sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos. (Colossenses 2.11-12, grifo meu).
O argumento de Paulo é evidente:
nós, cristãos, também fomos circuncidados, não no corte do prepúcio, mas com o
batismo cristão, o qual, por ter o mesmo significado e substituir a circuncisão
judaica na nova aliança, pode ser referido como circuncisão cristã. Ferguson
explica de forma clara:
A preocupação de Paulo, em Colossenses 2.11-15, é ressaltar a importância da obra de Cristo, a qual simultaneamente cumpre o significado da circuncisão e fundamenta o significado do batismo. Nesse sentido, os dois sinais, cada um dentro de sua própria aliança, apontam para uma mesma realidade[4].
Marcel
destaca a correspondência entre a circuncisão e o batismo, como segue:
A promessa, que é o fundamento da circuncisão, é igualmente do batismo; o representado é o mesmo; a causa, que é o amor de Deus, é a mesma; o conteúdo, Jesus Cristo, é o mesmo; a razão e o motivo pelos quais nos foi dado o sinal são os mesmos (...) o uso e eficácia são idênticos, assim como as condições de admissão. Eles só diferem com relação à natureza do sinal externo; depois de Jesus Cristo, um sacramento não podia mais ser um sacrifício sangrento[5].
Subsidiariamente, a circuncisão
indica uma identidade nacional e implica em bênçãos materiais – é aqui que
escorregam e distorcem os hereges teólogos da Teologia da Prosperidade –,
contudo, nem a aliança, nem o seu selo (a circuncisão), devem ser limitados a
essa identidade nacional. A natureza espiritual (mais ampla e profunda) da
aliança com Abraão e do sinal e selo, é indicada nas palavras da própria
aliança: “Serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (cf. Jeremias 31.33;
Gênesis 17.7; Êxodo 19.5-6; Deuteronômio 7.6)[6].
Visto que o batismo cristão
corresponde à circuncisão judaica, ele representa, para a igreja visível do
Novo Testamento, o mesmo que a circuncisão representava para a igreja visível
do Antigo Testamento [leia a Parte I da postagem para entender melhor]: o sinal
visível e o selo[8]
da aliança que Deus fez com Abraão, o “pai de todos os crentes”. Esse é o papel
da circuncisão, conforme as palavras do próprio SENHOR a Abraão, por ocasião da
instituição dessa ordenança, em Gênesis 17.1-13 (nosso texto ‘inspirador’ do
título das postagens):
Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente. Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe falou: Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e sim Abraão; porque por pai de numerosas nações te constituí. Far-te-ei fecundo extraordinariamente, de ti farei nações, e reis procederão de ti. Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência. Dar-te-ei e à tua descendência a terra das tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei o seu Deus. Disse mais Deus a Abraão: Guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós. O que tem oito dias será circuncidado entre vós, todo macho nas vossas gerações, tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qualquer estrangeiro, que não for da tua estirpe. Com efeito, será circuncidado o nascido em tua casa e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua.
A circuncisão dos israelitas e dos
prosélitos do judaísmo era, portanto, um sinal externo de confirmação do pacto
de Deus com Abraão, segundo o qual ele (Abraão) e seus descendentes
constituiriam a igreja visível de Deus na terra – e não meramente símbolo da fé
dos beneficiários. “Como todos os sinais de aliança, a circuncisão significava
a atividade e graça divinas, às quais os recipientes eram chamados a responder
com fé (cf. Gênesis 17.11). Ela não significava a própria fé”[9].
O sinal da circuncisão não implicava
necessariamente em que todos os de Israel, a igreja visível no Antigo
Testamento, fossem ou seriam verdadeiros israelitas (isto é, membros da igreja
invisível), ou seja: que necessariamente fossem ou seriam objeto da graça
salvadora. Para isso, eles precisavam se arrepender de seus pecados e crer nas
promessas da aliança, principalmente na obra messiânica da redenção (a aliança
é condicional). A circuncisão também não implicava em que os gentios não pudessem
se tornar membros da aliança – eles também poderiam ser admitidos na igreja
visível e receber o seu sinal e selo[10].
Os compatriotas do apóstolo Paulo
segundo a carne desfrutaram de privilégios especiais, tais como “a adoção, e
também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são
os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne...” (Romanos
9.3-4). Após demonstrar a culpabilidade universal de gentios e judeus, Paulo
questiona: “Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?
” Ele mesmo responde: “Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos
judeus foram confiados os oráculos de Deus”. (Romanos 3.1-2). À luz do que foi
dito até aqui, podemos chegar à seguinte conclusão: o batismo, assim como a
circuncisão, é o rito público ou forma externa determinada por Deus para
simbolizar e selar a admissão de pessoas na igreja visível, como beneficiárias
do pacto eterno da graça e objeto do seu cuidado especial, com vistas à
promoção do reino e da glória de Deus no mundo.
Continuamos no próximo post! [...]
NOTAS:
[1] CFW, cap. XXVII, § I. Textos bíblicos que
acompanham/referendam essa porção da CFW: Rm 6:11; Gn. 17:7-10; Mt. 28:19; I Co.
ll:23, e 10:16, e 11:25-26; Ex. 12:48; I Cor. 10:21; Rm. 6:3-4; I Co. 10:2-16.
[2] El Bautismo: Sacramento del Pacto de Gracia
(Rijswijk: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1968).
[3] Trata-se de um uso comum do genitivo (o
genitivo descritivo), com função adjetiva, como nos seguintes exemplos: το σωμα της αμαρτιας (o corpo do pecado, isto é, pecaminoso – Romanos 6.6); εν τω σωματι της σαρκος (no corpo da carne, isto é, carnal – Colossenses 1.22); το βαπτισμα Ιωαννου (o batismo de João, isto é, Joanino – Mateus 21.25).
[4] Sinclair B. Ferguson, Infant Baptism Response, in Baptism: Three Views, ed. David F.
Wright (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), p. 58.
[5] El Bautismo: Sacramento del Pacto de
Gracia (Rijswijk: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1968), p. 158,
com ênfases do autor originalmente em itálico. Optei pelo negrito aqui por dar
maior destaque.
[6] Com relação ao significado espiritual da
circuncisão, veja Dt 30.6; Jr 4.4; Rm 4.11 e Fp 3.3.
[7] Sobre o Pacto da Graça, é preciso
entender/lembrar antes o que é o Pacto das Obras. Por essa razão, a CFW, cap.
VII, § II e III, segue essa ordem na elucidação, qual seja: II. O primeiro pacto feito com o homem
era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida prometida a Adão e nele à sua
posteridade, sob a condição de perfeita obediência pessoal. (Gl. 3:12; Rm. 5:
12-14 e 10:5; Gn. 2:17; Gl. 3: 10); III.
O homem, tendo-se tornado pela sua queda incapaz de vida por esse pacto, o
Senhor dignou-se fazer um segundo pacto, geralmente chamado o pacto da graça;
nesse pacto ele livremente oferece aos pecadores a vida e a salvação por Jesus
Cristo, exigindo deles a fé nele para que sejam salvos; e prometendo dar a
todos os que estão ordenados para a vida o seu Santo Espírito, para dispô-los e
habilitá-los a crer (Gl. 3:21; Rm. 3:20-21 e 8:3; Is. 42:6; Gn. 3:15; Mt.
28:18-20; Jo 3:16; Rm. 1:16-17 e 10:6-9; At. 13:48; Ez. 36:26-27; Jo 6:37, 44,
45; Lc. 11: 13; Gl. 3:14).
[8] Cf. Rm 4.10. Assim como uma aliança de
casamento simboliza e sela o pacto de companheirismo e fidelidade entre um
homem e uma mulher que se unem por amor, ou a autenticação de um documento em
cartório.
[9] Ferguson, Infant Baptism Response, p. 55.
[10] No AT, talvez o exemplo mais clássico seja
na ocasião do êxodo do Egito. Note em Êxodo 12.43, que há uma proibição aos
gentios de participarem da páscoa, mas, no v. 48, Deus diz: “Porém, se algum
estrangeiro se hospedar contigo e quiser celebrar a Páscoa do SENHOR, seja-lhe
circuncidado todo macho; e, então, se chegará, e a observará, e será como o natural da terra; mas
nenhum incircunciso comerá dela”. (grifo meu).
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