ESCRITA E CONFESSADA: RELEVÂNCIA, HISTORICIDADE E RAZÕES PARA ADOÇÃO DE CREDOS E CONFISSÕES DE FÉ

Assembleia de Westminster, reunida na Inglaterra entre 1643 e 1649, tendo
produzido, entre outros documentos, a Confissão de Fé de Westminster, e os
Catecismos Maior e Breve de Westminster.  

Teologia da Prosperidade, TMI, ‘Cobertura Espiritual’, Apostolado Contemporâneo, G12, Teísmo aberto, “Jesus como chave-hermenêutica”, Teologia sul-americana, Ariovaldo Ramos, Caio Fábio Filho, Ed René Kivitz, Valdemiro Santiago, Renê Terra Nova, Ricardo Gondim (...); a lista de heresias “modernas” e seus pregadores é extensa e não para de ganhar adeptos e novos ‘expoentes’. Como lidar com isso? 

A resposta não vem sem antes examinarmos a História da Igreja, e percebermos que os movimentos heréticos e seus percussores e propagadores existem tão logo o pecado adentrou a humanidade. Por essa razão, homens piedosos – igualmente pecadores – mas desejosos de uma vida cristã autêntica, sólida e, sobretudo alicerçada na sã doutrina, esforçaram-se por sistematizar e ensinar o que conhecemos por símbolos de fé[1]. Para tratar a respeito, utilizarei trechos do artigo da Fides Reformata: A Relevância dos Credos e Confissões, de Heber Carlos de Campos, publicado em 1997[2]; Recomendo como leitura complementar: Os Símbolos De Fé Na História: Sua Relevância e Limitações, de Hermisten Maia Pereira da Costa, publicado em 2004[3] e do mesmo autor, o livro: "Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo", Editora Fiel, 2014, 569 p.

I. A Definição de Credo e Confissão

Um credo é uma elaboração científica daquilo que cremos com base na Escritura Sagrada. “Um credo ou regra de fé é uma afirmação concisa daquilo que alguém deve crer a fim de ser um cristão”[4]. Se alguém se confessa cristão, tem que possuir um conjunto de verdades devidamente elaboradas em que professa crer. É necessário que o cristão confesse a sua fé de forma que outros venham a saber em que ele crê. É uma insensatez professar fé em Cristo sem saber o conteúdo do que se confessa.

A definição de uma confissão não difere basicamente da de um credo, senão na forma. Uma confissão contém mais ou menos os mesmos elementos de um credo, mas de forma bem mais elaborada, com detalhes que um credo não possui, por ser mais conciso. Uma confissão aborda mais assuntos do que um credo, e os apresenta de forma mais sistemática. Um credo sempre começa como credo ou credemus (“eu creio” ou “nós cremos”), enquanto que as confissões geralmente não possuem essa característica.

II. A Importância da Historicidade da Fé

Os credos são extremamente importantes para os cristãos que vivem no limiar do terceiro milênio [5], porque estes não são essencialmente diferentes dos crentes que viveram nos primeiros séculos da era cristã. Para os cristãos da era patrística, os credos foram absolutamente necessários para a definição teológica e para a vida cristã prática. A nossa fé tem que possuir raízes históricas, e os credos nos ajudam a entendê-las. Por exemplo, o Credo Apostólico dá-nos informações sobre quem foi Jesus Cristo. Ali se diz que ele nasceu da virgem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, ressurgindo dos mortos ao terceiro dia. Esses todos são dados históricos. Eles são uma afirmação de nossa fé histórica. Se a redenção trazida por Cristo não é um fato histórico, como alguns teólogos contemporâneos chegaram a afirmar, então nós não somos realmente redimidos.

III. A Origem Escriturística dos Credos

O cristianismo é a única grande religião do mundo que tem esboçado o conteúdo de sua fé na forma de credos. Um credo não é a Palavra de Deus aos homens, mas é composto de palavras de homens a respeito de Deus, uma resposta humana à revelação divina. Uma afirmação credal é a primeira elaboração de teologia feita pelos cristãos. Todavia, os credos não precisam ser necessariamente escritos, pois nos começos do cristianismo a fé era expressa oralmente aos catecúmenos ou professada por eles no batismo, muito antes de eles serem colocados em forma escrita. Parece que as formulações doutrinárias já eram comuns no tempo dos apóstolos. O gérmen dos credos está afirmado nos escritos apostólicos.

Judas, por exemplo, faz referência direta a algum tipo de formulação existente no seu tempo. Ele fala da " que uma vez por todas foi entregue aos santos" (v. 3). Essa fé é o conjunto de verdades reveladas que estavam de alguma forma sistematizadas e eram aceitas pelos crentes de então. No v. 20 Judas fala da edificação dos crentes na fé santíssima, o que pressupõe a existência de uma formulação pré-credal. Em contraste com as doutrinas errôneas ensinadas no seu tempo (1 Tm 1.3; 6.3), Paulo fala a Timóteo (e a Tito) a respeito da "sã doutrina" (1 Tm 1.10; 4.6; 2 Tm 4.3; Tt 2.1), que ele devia ensinar (2 Tm 4.2-3) e pela qual deveria zelar (1 Tm 4.16; 6.1). A pregação da "palavra fiel" deve ser "segundo a doutrina" (Tt 1.9), e a doutrina deve ser "ornada" pelo proceder dos crentes (Tt 2.10).

No período apostólico já havia algumas doutrinas elaboradas que o escritor aos Hebreus chama de "princípios elementares da doutrina de Cristo" (ver Hb 6.1-3). Ele também expressa a sua preocupação com a entrada de "doutrinas várias e estranhas" no seio das igrejas (Hb 13.9), que exigiam a definição da verdadeira doutrina. Portanto, nos tempos do Novo Testamento já se via a grande importância de se crer corretamente, isto é, a importância de permanecer na doutrina ensinada por Cristo (ver 2 Jo 8-11).

IV. A Necessidade dos Credos e Confissões

As Igrejas Reformadas sempre primaram pela elaboração de credos e confissões. É característica das mesmas serem confessionais. Com base nas afirmações confessionais da Escritura, as Igrejas Reformadas viram a necessidade de possuírem uma identidade teológica. E há algumas razões que tornam necessária a formulação de um credo:

A. A Natureza da Igreja
A igreja de Cristo não é simplesmente uma reunião de pessoas que coincidentemente pensam a mesma coisa. Elas devem pensar basicamente as mesmas coisas porque para elas existe um só padrão de referência que é a Santa Escritura. A igreja de Cristo sempre foi confessante, porque a fé do coração deve ser expressa em proposições, em termos lúcidos, de forma que todos possam saber claramente em que a igreja crê.

Um credo deve ser a expressão exterior daquilo que a igreja crê interiormente. Ele é o produto da reflexão da igreja sobre a revelação divina. "Quanto mais rica for a reflexão da igreja, mais pleno e mais profundo torna-se o tom de sua confissão."[6] Um credo ou confissão sempre deve expressar o labor da igreja sob a orientação do Espírito Santo. Todavia, houve uma outra razão para a elaboração dos credos e confissões na história da igreja:

B. O Ataque de Outras Tradições Religiosas
Onde quer que a igreja professe abertamente a sua fé, ela irá encontrar oposição. Quando mais definida em sua teologia, mais oposição a igreja receberá. É importante observar que foi nos períodos de maior confrontação que a igreja mais produziu em termos de credos e confissões. Qual é a razão por que a igreja contemporânea não tem sido perseguida e atacada? É porque ela tem deixado de ser definida teologicamente. Historicamente, todas as vezes em que a igreja enfrentou oposição, ela se definiu. Certamente, a igreja contemporânea haverá de enfrentar discriminação quando tiver definido os seus rumos teológicos de maneira inequívoca. Será que a igreja contemporânea está disposta a pagar esse preço?

Os credos e as confissões mostram que a igreja tem definições a fazer e rumos a seguir. A verdadeira igreja de Cristo tem que possuir um norte teológico a ser seguido; ela não pode permanecer neutra nas questões espirituais, éticas e morais. Ela tem que ser confessional para poder combater os inimigos teológicos. Do contrário, ficará desnorteada. Uma outra razão que torna necessária a existência de credos e confissões na atualidade é:

C. O Espírito do Tempo Presente
Vivemos num tempo muito diferente do período da Reforma, quando as confissões foram formuladas. Havia então muitos inimigos da fé protestante, mas agora a situação é absolutamente diferente. Os protestantes não são tratados da mesma forma, e ninguém os tem atacado como aconteceu no passado. Contudo, essa situação não dispensa a necessidade de credos e confissões, pois é exatamente num tempo como o de hoje, de indefinição teológica, que se faz necessária a afirmação da verdade de forma objetiva. O ambiente teológico atual é o de um pluralismo onde as pessoas fogem de verdades objetivamente afirmadas.

A Escritura tem sido abordada por óticas diferentes, que geralmente são chamadas de cosmovisões. Ela tem sido interpretada por pessoas que possuem cosmovisões muito diversas, que ocasionam entendimentos bastante diferentes dos mesmos textos. A fé reformada é uma tentativa justa e consistente de interpretar a Escritura de acordo com a própria Escritura. Portanto, ao encerrar-se o século XX[7], as Igrejas Reformadas têm que fazer jus à sua história e reafirmar veementemente a fé que uma vez por todas nos foi entregue, da forma em que está interpretada pelos símbolos reformados de fé. Uma outra razão que torna absolutamente necessária a afirmação objetiva da nossa fé é:

D. O Experiencialismo Vigente em Nossos Dias
O subjetivismo de nossa geração obriga a igreja a voltar aos padrões confessionais. Muitos evangélicos estão embarcando num experiencialismo desenfreado, onde os sentimentos têm sido a medida de todas as coisas, assim como no Iluminismo a razão tornou-se a medida de todas as coisas. Muitos ministros têm desprezado a verdade da Escritura e preferido as experiências místicas, que têm se tornado a sua "regra de fé." O resultado disso é que a igreja evangélica no mundo tornou-se uma Babel teológica, onde ninguém consegue falar a mesma língua, porque não existe padrão objetivo de verdade em que se possa confiar.

No cristianismo atual não há paradigmas confiáveis. A ênfase está na subjetividade das opiniões que controlam todo o arcabouço teológico de muitos líderes espirituais, os quais, com muita facilidade e maestria, controlam a mente e os sentimentos de "seus fiéis." É patente a necessidade dos credos nos dias de hoje, para que tenhamos um paradigma confiável baseado na totalidade da Palavra de Deus. Há mais uma razão a evidenciar a necessidade da reafirmação dos credos e confissões. Trata-se de um problema específico de nossa geração:

E. A Influência do Pluralismo Religioso
A presente geração anda tateando às cegas, sem saber onde apoiar-se. Tem sido ensinado nas escolas e, o que é mais desconcertante, em muitas igrejas da Europa, dos Estados Unidos e em algumas aqui do Brasil, que as religiões não-cristãs são caminhos alternativos para Deus. Jesus não é o único modo de chegar-se a Deus. Alguns cristãos admitem que Jesus é até o melhor, mas não o único. Por causa dessa filosofia religiosa, a verdade que foi pregada até o período pré-moderno não é mais a única. Não existe uma verdade na qual as pessoas possam confiar, porque elas têm sido ensinadas que ninguém possui a verdade, e sim que as verdades dependem do ponto de vista de cada um. Há uma variedade de verdades, dependendo do gosto do freguês. E, como não possuem discernimento espiritual, as pessoas andam desnorteadas.

Este tempo é de grande urgência para a igreja cristã, que pode e deve assumir posições teológicas e ético-morais a fim de poder ser uma bússola para as pessoas desorientadas. O tempo presente exige dos genuínos cristãos uma fé seguramente formulada e confessada, a fim de que seja o único caminho de salvação, um guia seguro para o céu, pois aponta a única verdade que é Jesus, e tudo o que ele disse e fez por pecadores perdidos. Há uma última razão que torna necessária a reafirmação dos credos e confissões em nossos dias. Talvez esta seja a mais importante de todas, porque tem uma conotação positiva:

F. A Pureza da Doutrina
Escrevendo à igreja de Filipos, Paulo disse de maneira inequívoca que os irmãos deviam "lutar juntos pela fé evangélica" (Fp 1.27). Essa fé mencionada por Paulo era o conjunto de verdades que os crentes haviam recebido dos apóstolos e que deviam preservar até mesmo ao custo de suas próprias vidas. Esse espírito de união na luta pela fé deveria unir todos os cristãos. Estes é que deveriam preservar a pureza da doutrina. Se os cristãos genuínos não fizerem isto, eles põem a perder todo o seu fundamento teológico.

A mesma ideia teve Judas, provavelmente o irmão do Senhor, quando escreveu aos seus leitores, exortando-os a batalharem "diligentemente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (v. 3). É responsabilidade nossa defender a fé, mas como defendê-la se não a temos afirmada e confessada? A Escritura tem que ser entendida da maneira mais clara possível e este entendimento tem que ser afirmado confessionalmente, a fim de mostrarmos ao mundo aquilo em que cremos, sendo homens e mulheres teologicamente definidos. Além disso, Judas diz que essa batalha tem que ser diligente, mostrando todo o nosso esforço na preservação da pureza da doutrina. Na época em que Judas escreveu, o Novo Testamento ainda não havia sido reunido canonicamente. As verdades eram conhecidas dos crentes de um modo verbal. Só um pouco mais tarde é que as cartas foram colecionadas. Judas, portanto, referia-se aos conceitos doutrinários que os crentes haviam recebido dos apóstolos e pelos quais deveriam batalhar diligentemente. Eles não deviam permitir que a fé fosse deturpada, como alguns costumavam fazer (2 Pe 3.16). A pureza da doutrina é uma questão prioritária e fundamental em todas as épocas, especialmente quando ela se encontra debaixo de tantos ataques.

Não há como preservar a pureza da doutrina de Deus se ela não for devidamente escrita e confessada.


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[1] Os Símbolos de Fé oficiais da Igreja Presbiteriana do Brasil são: Confissão de Fé de Westminster, Catecismo Maior de Westminster e Breve Catecismo de Westminster.
[2] Disponível aqui em link direto para download do artigo em formato PDF.
[3] Disponível aqui em link direto para download do artigo em formato PDF.
[4] Bruce A. Demarest, "Christendom’s Creeds: Their Relevance in the Modern Word," Journal of the Evangelical Theological Society 21 (December 1978), 345, citado em A Relevância dos Credos e Confissões, de Heber Campos.
[5] Note que Heber Campos publicou originalmente esse artigo em 1997, portanto, às portas da virada para o século XXI.
[6] Philip Hughes, ed. geral, The Encyclopedia of Christianity, "Confessions and Creeds" (Marshalton, Delaware: The National Foundation for Christian Education, 1972), vol. 3, 89.
[7] Veja nota 5.

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