NADABE, ABIÚ E O FRACASSO SACERDOTAL (Lv 10)
Nadabe e Abiú, gravura de Gerard Jollain, publicada em 1670. |
Levítico 9 se encerra com um maravilhoso cenário de adoração comunitária. O SENHOR consumiu o holocausto e a gordura sobre o altar, diante de um alegre e quebrantado povo. O conceito de redenção é expresso claramente em 9.24, quando o cordeiro (holocausto) é consumido por Deus, livrando os presentes. O fogo destinado aos pecadores recai sobre o cordeiro-oferta. Tal qual ocorre entre Gênesis 2 e 3, a mudança no tom da narrativa é significativa e instrutiva: da comunhão para a rejeição. Dois sacerdotes, filhos de Arão são consumidos pelo fogo. Para consternação dos intérpretes, que imaginaram uma variedade de
cenários, o texto bíblico não provê detalhes a respeito das circunstâncias ou
motivações dos dois sacerdotes. Só é dito o suficiente para deixar claro que a
ofensa fora queimar incenso ao Senhor com fogo não autorizado (“estranho”)¹. Esse fogo deve ter consistido de brasas
vivas de uma outra fonte que não o altar exterior que o próprio Senhor havia
acendido (cf. Lv 16.12, Nm 16.46). É possível que a chave para melhor entender essa passagem seja essa informação: eles produziram seu próprio fogo. Em resposta à morte de
seus sobrinhos, Moisés comunicou o significado do evento à Arão. A
declaração solene de Deus foi proferida com um paralelismo poético:
“Serei santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante de todo o povo.” (10.3)
Aqueles que estão achegados a Deus, são aqueles que se aproximam para oferecer sacrifícios:
os sacerdotes. Nesse tipo de contexto, o adjetivo perto קָרוֹב
(qarob) se refere a
um oficial que pode ter acesso à um soberano diretamente, sem precisar de uma
intermediação (Ez 23.12, Et 1:14). A conclusão é: ninguém poderá se achegar, se aproximar de Deus sem ter nas mãos o sangue do cordeiro. Não há relacionamento entre o homem pecador e Deus, sem que haja um mediador para essa aliança. 1 Pedro 2.4-5 esclarece bem o fato de que só podemos nos achegar a Deus e oferecer-lhe adoração verdadeira, plena e aceitável (sacrifícios espirituais) por meio de Cristo, nosso Cordeiro, holocausto santo ofertado ao SENHOR em nosso lugar:
À medida que se aproximam dele, a pedra viva — rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus e preciosa para ele — vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo. (1 Pedro 2.4-5, NVI, grifo meu).Ser próximo do SENHOR seria a marca distintiva de Israel e assim Deus concebeu desde os primórdios. Outra passagem emblemática a esse respeito é Deuteronômio 4.6-7: "Guardai-os pois, e cumpri-os, porque isso será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os olhos dos povos, que ouvirão todos estes estatutos, e dirão: Este grande povo é nação sábia e entendida. Pois, que nação há tão grande, que tenha deuses tão chegados como o Senhor nosso Deus, todas as vezes que o invocamos?" (ACF, grifo meu).
A
PERSISTÊNCIA DIVINA
Deus havia acabado de
acender o fogo do altar, simbolizando sua presença entre o povo (9.23-24) e o
exato verso seguinte já retrata a violação de Nadabe e Abiú. A gravidade da
ofensa deles foi amplificada pela grandeza do privilégio que possuíam. Como
filhos mais velhos de Arão (cf. Num 3.2), estavam hierarquicamente abaixo de Moisés e Arão. Mas o impressionante é como o fracasso
deles se encaixa perfeitamente no padrão que corre através das Escrituras: Adão
e Eva caíram não muito depois de Deus ter inaugurado o mundo perfeito; Noé se
embebeda logo depois de Deus ter estabelecido uma aliança com ele; o povo de
Israel se volta à idolatria logo depois de ter sido libertado da escravidão
do Egito (e enquanto Moisés recebia a lei de Deus).
Mas o padrão continua.
No Novo Testamento, vemos os discípulos abandonando Jesus e Pedro negando-o
logo depois de celebrarem a ceia da nova aliança. Não estamos falando de
pequenos eventos aqui, mas sim do fracasso de pessoas que participaram do
estabelecimento de importantes fases da aliança de Deus com seu povo. A mensagem da Bíblia é que Deus persiste
nos Seus planos de salvar os seres humanos a despeito de suas falhas, deixando
de lado seu direito de simplesmente anular a Aliança. Não há como atribuir
essa graça a nada além do seu caráter misericordioso, que Ele mesmo proclamou a
Moisés no Monte Sinai, logo depois do episódio do bezerro de ouro. Entretanto,
indivíduos podem sempre escolher removerem-se da zona de benefícios da Aliança.
Assim, embora Deus não tenha retirado sua presença do santuário ou invalidado
os sacrifícios pela comunidade, quando Nadabe e Abiú violaram seu ofício
sagrado, eles foram removidos sumariamente da sua posição.
EMPATIA SANTA
Quando lidamos com o fracasso alheio, nós que também fracassamos e que somos pecadores por natureza, normalmente reagimos com condescendência. Em alguns momentos até nos solidarizamos ao estilo: eu também já passei por isso ou já cometi erros parecidos, ou ainda -- o que é pior -- é assim mesmo, é natural agir/reagir dessa maneira, eu mesmo já (...). Não é assim com Deus. Sua empatia é santa. Ele não nos conta uma história de fracasso pessoal a fim de nos consolar, para que não nos sintamos sós em nossos erros e percalços. Ele toma nosso lugar enviando seu próprio Filho como substituto legal, para ser consumido pela justiça tal qual já vimos antes, em Levítico.
APLICAÇÃO:
A SENSIBILIDADE DE NOVOS RELACIONAMENTOS
Relacionamentos novos
podem ser facilmente danificados. E Deus sabia disso. Em Levíticos 8 e 10 nós
vemos que Deus definiu algumas proteções em volta do seu novo relacionamento
com os israelitas. Por exemplo, os sacerdotes não sairiam do santuário no tempo
determinado, Nadabe e Abiú foram rapidamente disciplinados antes que pudessem
causar dano a toda comunidade e os sacerdotes sobreviventes deveriam
representar Deus apropriadamente perante o povo, mesmo em meio a dor do luto.
Esse fardo estava
primariamente sobre os líderes religiosos, cujas ações e atitudes moldariam a
percepção do povo a respeito de Deus. Obviamente, nossas estratégias para
proteger o relacionamento das pessoas com Deus precisam ser diferentes daquelas
em Levítico 8 e 10. Entretanto, como nos dias de Nadabe e Abiú, o princípio
permanece: aqueles que modelam as percepções que os outros têm de Deus precisam
ter consciência da sua influência. A história sagrada deixa evidente que os
efeitos causados por um ofício sagrado mal utilizado e abusado são desastrosos.
A verdade, a Bíblia, o ministério e as ordenanças de Deus desdenhadas. A
irreverência nasce no coração.
Na igreja, a
responsabilidade de cuidar dos novos relacionamentos com Deus não recai somente
nos ombros daqueles que estão em posições oficiais de liderança. Todos têm seu
papel. Como nós tratamos os Pedros, as Marias Madalenas, os Nicodemos, Judas e
Tomés em nosso meio? De vez em quando faríamos bem em reler os Evangelhos com
essas perguntas em mente, analisando como Jesus fez isso. Paulo advertiu:
“Tenham cuidado, entretanto, para que o exercício da sua liberdade não se torne
uma pedra de tropeço para o fraco” (1 Co 8.9). Jesus concordou com esse
pensamento, mas a forma forte e vívida que ele ensinou a responsabilidade pela
sensibilidade daqueles que são mais vulneráveis é muito mais parecida com
Levítico 10 (cf. Mt 18.5-6).
A
RESPONSABILIDADE DE PRESERVAR O JULGAMENTO CLARO
Em 1982 um jovem que
estava bêbado e drogado não percebeu uma curva na rodovia 580 perto de São
Francisco. Seu carro bateu de frente em um outro que vinha na direção oposta,
que foi lançado com violência pelo ar, batendo no teto de um Datsun B-210 vindo
atrás, em outra faixa. O Datsun sofreu um solavanco, parou e Roy Gane e sua esposa conseguiram sair do carro com uma concussão e
uma costela trincada. Mas o outro carro que ia a sua frente não teve a mesma
sorte. A motorista morreu instantaneamente e suas duas filhas sofreram danos
graves, como rostos desfigurados e uma espinha rompida. Toda essa carnificina
resultou da irresponsabilidade de uma pessoa que escolheu se intoxicar.
Há diversas maneiras de
comprometer a habilidade cerebral de controlar o julgamento racional: químicos,
falta de sono, dieta pobre, falta de exercícios, estresse e várias outras. Nós
deveríamos buscar manter a nossa clareza mental como uma questão de bom senso,
no mínimo. Mas para líderes espirituais, a vara é mais alta. Suas ações,
decisões, atitudes, palavras e vidas espirituais pessoais, que requerem o uso
dos seus cérebros e sistemas nervosos, podem afetar os destinos eternos das
pessoas dentro das suas esferas de influência.
CARREGANDO
OS FARDOS UNS DOS OUTROS
Já
que os sacerdotes devem carregar os fardos daqueles a quem eles servem e os
Cristãos são chamados a serem um “sacerdócio real” (1 Pe 2.9), não é
surpreendente que Paulo diga: “Carreguem os fardos uns dos outros, e dessa
forma vocês cumprirão a lei de Cristo” (Gl 6.2). Nós não podemos carregar os
fardos dos outros de uma maneira absoluta e substitutiva como Cristo fez para
nos conceder o perdão. Mas, embora nós não carreguemos literalmente os nomes
das tribos sobre nossos corações, como Arão quando ministrava perante o Senhor,
nós podemos metaforicamente carregar em nossos corações os nomes de nossos
membros familiares, amigos, colegas de trabalhos e assim por diante. Ao servir
os outros e interceder por eles em oração, nós temos o privilégio de nos juntarmos a
Cristo em seu ministério sacerdotal -- esse sim, perfeito, sem um único fracasso ontem, hoje e sempre.
___________
¹ O fogo estranho זור אש ('esh zuwr) não está explicado. Os elementos usados, ou o procedimento adotado, ou ambos podem ter contrariado a prescrição. Fosse qual fosse a motivação e o abuso, o ato aos olhos de Deus foi merecedor do castigo da morte.
** Não desgrenheis os cabelos (v. 6). Fica melhor: Não deixem seus cabelos despenteados. As costumeiras expressões de luto foram negadas ao sumo sacerdote e seus dois filhos remanescentes, neste caso para que não desse a impressão da insatisfação com o juízo divino. Antes, deviam permanecer recolhidos no santuário, enquanto outros realizavam o sepultamento e expressavam a dor.
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